As paçocas
Enquanto o ônibus não chegava, o camelô tentava obter algum lucro.
- Olha aí, pessoal! O ônibus vai demorar, hein! Até lá, vamos adoçar a boca! Eu tenho jujuba, chiclete, bala, bananada e paçoca.
- O senhor é vidente? - questionou uma adolescente.
- Num entendi, novinha.
- Quem disse que o ônibus vai demorar?
- Conheço o motorista. É o Tonhão Roda Presa. Ele é péssimo na direção!
- E daí? - quis saber uma ruiva.
- E daí que o engarrafamento na avenida tá intenso. Tonhão deve ter batido em algum poste.
- Cruzes, moço! Vira essa boca pra lá! Vou até ligar para o Padre Juquinha! - advertiu uma senhora que desandou a se benzer.
- Com o sem poste, o motorista precisa chegar para que nós possamos embarcar! - filosofou um careca.
- Foi o que eu disse: ele vai demorar! Até lá, vocês querem uma paçoca?
- Eu quero - disse, com elegância, uma morena com pinta de dondoca paraguaia.
- Uma por um real, três por cinco!
- Tenho que pagar pela paçoca?
- Eu ofereci, não dei. Vê lá se tenho cara de fundador de instituto de caridade?
- Mundo capitalista!
- Tudo na vida tem preço, cumadi. Inclusive uma paçoca - disse um banguela bigodudo.
- Tem coisa mais absurda do que comprar água mineral? Água é patrimônio sagrado, tinha que ser gratuita, assim como oxigênio!
- Tá bem, tá bem. Me dê três paçocas.
- A senhora é debochada! Vai pagar três inofensiva paçocas com uma nota de cem?
- Isso é um ultraje - disse um porteiro.
- Devo concordar com o vendedor ambulante: isso é imperdoável! - endossou um contínuo.
- Um momento, pessoal! Vocês não perceberam o erro? Se uma paçoca custa um real, por que três custam cinco? - gritou um ceguinho.
- É verdade! Ele está anunciando uma promoção caduca! - disse uma vovó.
- Caduca é a senhora, com todo respeito aos seus cabelos brancos! Em nenhum momento eu falei em promoção!
- Devo concordar com o vendedor perambulante - reiterou o contínuo.
- Impressão minha ou há um complô acontecendo? É sério que vocês concordam com um cara que nunca me viu antes?
- Não preciso ver para saber que estamos diante de um golpista! Charlatão dos doces! Impostor das guloseimas! Fariseu da gula!
- Calma, diplomata! Cometi um ato falho! Se errar é humano, não perdoar é desumano! Como prova da minha ingenuidade, vou dar três paçocas para você.
- Prezados, perceberam que esse salafrário tenta comprar o silêncio do acusador? - perguntou um senhor metido a desembargador de boteco.
- Também quero um pacote dessa "compra" ou então isso vai parar na delegacia! - alertou um barrigudo.
- Guenta aí! Nessas condições, não podemos levar esse caso para as autoridades! Você está sugerindo um suborno do suborno! - disse um barbudo.
- Exatamente! Agora quem vai correr atrás de um boletim de ocorrência sou eu! Sou vítima de um suborno no mais alto grau! Vocês estão me obrigando a participar de um crime...
- Aê, turma! Já viram que o ceguinho está mudando de cor? Ele está com cara de um emoji engraçado! Tu faz stand up? - disse um moleque.
- Ele está engasgado! Alguém, pela caridade, dá um tapa nas costas do coitado! - gritou uma balzaquiana.
- Com prazer! - disse uma vovó, dando um caprichado golpe de guarda-chuva nas costas do sujeito que se espatifou no chão.
Todos, claro, olharam com espanto para aquela aparente senhora inofensiva que reagiu.
- Que foi? Nunca viram uma senhora que bebe chá de ginko biloba?
Ainda tentando recuperar o fôlego, o ceguinho foi direto ao ponto.
- Essas paçocas estão estragadas!
- Alto lá! Você me acusa de vender alimentos vencidos?
- Não é acusação! É fato! Meu fígado não mente!
- Deixe de ser manipulador! As pessoas não precisam ver esse show de quinta categoria!
- Mas eu estou vendo a embalagem, safado! Data de validade: 29 de fevereiro de...
A conversa não teve desfecho, pois ceguinho e vendedor levaram uma coça histórica. O primeiro por nunca ter sido cego e (pior!) por ter obtido esmola da turma minutos antes. O segundo por estar vendendo produtos com a única data possível que não se repete todos os anos.
Para piorar, essa ocorrência aconteceu num ano que não era bissexto.
Edu Soares