Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria - Capítulo V: Conseguindo um Atestado

Eu acabei de descer do carro do Tom. Eu estava microfonado e com um ponto no ouvido indo em direção à clínica do Doutor Álvaro Boa Morte. Minha jaqueta de moletom com um gorro disfarçava tanto o microfone, quanto o ponto. Os óculos escuros foram só pra completar o disfarce. O plano era flagrar o médico dando um atestado falso para que Tom possa levá-lo à delegacia.

Virei a esquina e me deparei com a placa da clínica: "Clínica Boa Morte". Cara, tá de brincadeira, né? Tá certo que esse é, provavelmente o sobrenome do cara, mas esse nome não combina com uma clínica médica. Não dá, não encaixa! Quem, em sã consciência, vai tratar uma doença na num lugar chamado "Clínica Boa Morte"? Só se for pra pegar atestado falso mesmo.

Enfim, entrei na clínica. Cheguei na recepção e a recepcionista já foi perguntando, como quem não estava afim de conversa:

– Nome e horário marcado.

Nessa hora, Tom disse no meu ponto:

– Jerry, foi mal! Esqueci de falar no carro. Você é Jefferson Barbera e tá marcado para as 19:30.

Jefferson Barbera? Eu não aguentei. Virei o rosto para trás e cochichei próximo do microfone, fingindo que estava bocejando:

– Você não baseou esse personagem em um dos criadores do "Tom & Jerry" não, né?

– Se você tivesse me falado antes sobre o desenho, eu não teria feito isso.

A recepcionista não gostou muito da demora da minha resposta e falou mais alto e com um tom ainda mais ríspido:

– Nome e horário marcado.

Então eu entrei no personagem. Engrossei um pouco o tom da minha voz e comecei a falar de um jeito meio marrento:

– Foi mal aê, mina! Eu sou Jefferson Barbera, tô marcado pras sete e meia.

– O senhor tem cadastro na clínica, senhor Jefferson?

– Não sou chegado nesses bagulho de cadastro não, tá ligado?

Nessa hora, Maurício, por algum motivo, falou no meu ponto:

– Detetive, não exagera no disfarce!

Após isso, eu só ouvi a voz do Tom falando "me dá isso aqui". Aí a recepcionista continuou:

– Olha, não sei quem você é, mas aqui todo mundo tem que responder o cadastro. Vamos fazer ou o senhor vai ficar parado com essa pose fajuta?

– Firmeza então! Mas só porque eu fui com a tua cara, tá ligado?

– Oh, como estou lisonjeada! Agora senta aí pra responder.

Não gostei do tom sarcástico da recepcionista, mas eu tinha uma missão e precisava cumprir. Então, sentei na cadeira à frente do balcão e ela começou as perguntas:

– Profissão.

– Num tenho.

– Como você vai pagar a consulta então

– É que eu tenho outra fonte de renda.

– Do "tá ligado" pra "outra fonte de renda". Você é mesmo da quebrada, hein?

– Cê num sabe da missa, um terço, mina!

Por algum motivo, ela começou a rir com tom de deboche. Mas depois, continuou:

– Ah, que se dane! Qual é a sua fonte de renda?

– Num posso falar.

– Olha, eu preciso colocar a sua atividade para o doutor saber se isso afeta a sua saúde.

Eu me curvei mais perto do balcão e falei baixo:

– Tem a ver com internet.

– Você é hacker?

– Fala baixo, mina!

Nesse mesmo instante, Tom me disse pelo ponto:

– Jerry, você está tentando fazer papel de hacker?

A recepcionista começou a gargalhar incontrolavelmente. Enquanto isso, Tom ia me falando pelo ponto:

– Jerry, hackers não costumam falar desse jeito. Eles não gostam de chamar atenção.

Então, ficaram, quase ao mesmo tempo, a recepcionista e o Tom falando comigo:

– Ai, ai! Tá explicado! Você deve ter começado ontem, né?

– É, Jerry, nessa ela tem razão. Hackers não costumam se vestir desse jeito na rua, só quando fazem vídeos ameaçando na internet mesmo.

– Aposto que você começou com isso porque viu num desenho. Ah, desculpa, num anime! Hahahahahaha.

– Além disso, aquela voz que você ouve nos vídeos não é a voz real deles, é uma voz distorcida eletronicamente.

Eu fui ficando confuso com a situação, até que não aguentei. Acabei deixando escapar um grito:

– Dá pra parar vocês dois?

Um ato falho que pode comprometer tudo. A recepcionista ficou me olhando com cara de desconfiada. Tom deixou escapar um "eita" no ponto. Então a recepcionista me perguntou:

– "Vocês dois"?

Eu não tinha muito o que falar na hora. Eu não ia falar pra ela que eu estava com um ponto no ouvido. Por causa do nervosismo, acabei dizendo a primeira coisa que veio na minha cabeça, que foi:

– É que eu vejo espíritos... Aí tinha um... Atrás de você... Também tava dando risada...

Talvez fosse melhor eu falar do ponto. Percebi isso depois do palavrão que eu ouvi do Maurício. Mas, para minha sorte, a reação da recepcionista foi:

– Ah, dane-se! O Doutor Álvaro que se vire com você. Quem sabe ele não te dá um remédio pra esquizofrenia, não é mesmo?

Ah, funcionários infelizes com o trabalho! Sem eles, o país não anda. Se bem que, se eles estivessem felizes, talvez o país andasse mais, né? Mas nesse caso, não. A infelicidade laboral da recepcionista fez com que ela não chamasse a Polícia para mim, só pra passar a bucha pro patrão dela.

Sentei na sala de espera e dei uma boa olhada no lugar. Não tinha muita gente além de mim. Apenas uma senhora idosa com um andador e um homem de uniforme de empresa sentado com os braços cruzados. A clínica seguia o estereótipo das clínicas médicas, pois havia uma mesa de centro com várias revistas velhas. Uma delas falava sobre a final da Copa de 1998. Não peguei pra ler porque esse dia foi muito traumático pra mim (até a Copa de 2014, lógico).

O médico chamou primeiro a senhora, depois de uns 20 minutos, chamou o homem uniformizado. Aí, depois de menos de 10 minutos, me chamou. O fato da consulta do homem uniformizado ter demorado menos da metade do tempo da consulta da senhora me chamou a atenção.

Passei pelo Doutor Álvaro, que ficou parado na porta, e entrei no consultório. Um consultório simples, com uma maca, uma mesa com um computador e alguns aparelhos médicos que eu não sei dizer o nome. Eu me sentei na cadeira reservada para pacientes, na frente da mesa. O Doutor Álvaro passou por mim, se sentou em sua cadeira e começou a mexer no computador. Então ele começou:

– Senhor Jefferson Barbera, certo?

Eu mantive meu modo marrento de falar:

– Certo!

– A Suellen colocou no seu cadastro que você está com suspeita de esquizofrenia. Desde quando você suspeita disso?

Essa recepcionista não foi com a minha cara mesmo.

– Tá me tirando, mano? Essa mina tava de zoação com a minha cara o tempo todo.

Então, Tom disse no meu ponto:

– Jerry, você vai insistir nesse jeito de falar mesmo?

Eu tive que usar a estratégia do bocejo de novo pra virar a cara pra trás e cochichar no microfone:

– Deixa eu, Tom! Eu sei o que estou fazendo!

O Doutor Álvaro continuou:

– Se não é isso, porque está aqui então?

Eu me virei pra ele de volta, me inclinei pra perto da mesa e falei:

– É o seguinte, mano: eu preciso justificar umas faltas pro meu patrão, tá ligado?

– Mas aqui está falando que você não trabalha com uma profissão legalizada, só como hacker.

– É... Que eu faço parte de um grupo de hackers.

– E mesmo assim precisa de atestado?

– É que eles são rígidos... Digo... São dureza.

O Doutor Álvaro me olhou com um olhar de desconfiança:

– Você não é um policial disfarçado não, né?

– Quê? Cê é louco? Eu tenho nojo de polícia!

Essa pergunta dele indica que ele já deve ter passado por isso antes. Sem falar nada, ele foi pegando um bloco de papel impresso da gaveta dele, sem tirar o olho de mim. Ele pegou sua caneta e me perguntou:

– Qual é o período das faltas?

Rapaz, tão fácil assim?

– Desde terça feira da semana retrasada.

Ele olhou no calendário dele.

– Desde o dia 8 então. Muito tempo. Vou falar que você teve uma pancreatite e precisou ficar internado.

Enquanto ele ia escrevendo, eu precisei falar algo que estava corroendo a minha mente naquele momento:

– Então, eu também tenho um nome pra disfarce.

– Como assim?

– É, eu sou o Jeff Barbeiro.

– Bom, primeiro, se sua intenção é não ser detectado, não é um bom nome. Segundo, o que isso tem a ver?

– É que o seu nome, né?

– Como assim?

Eu acabei desabafando de um modo um tanto escandaloso:

– Boa Morte, poxa! Como que um médico vai se chamar Boa Morte? Pelo amor de Deus!

O Doutor Álvaro não gostou nem um pouco da cena. Ele só me deu o papel e me disse, falando firme e com uma certa raiva, apontando o dedo indicador:

– É por causa de pessoas que pensam como você que eu me vi obrigado a fazer esse tipo de serviço. Ou você acha que, quando eu saí da faculdade de medicina, meu objetivo era sair distribuindo documentos falsos? Isso é preconceito, sabia? Lá em Portugal, esse sobrenome é comum, teve até um jogador que jogou Copa do Mundo pela seleção portuguesa com esse nome. Mas, não! Aqui é gente que acha que eu vou matar a pessoa só por causa do meu sobrenome!

Foi uma confissão dele, mas, sei lá, nessa hora me deu um certo peso na consciência. O Doutor Álvaro continuou:

– Agora pega essa porcaria desse atestado e paga o que deve pra Suellen.

O Doutor Álvaro terminou a frase e logo aparece Tom, arrombando a porta do consultório, com uma arma empunhada:

– Doutor Álvaro Boa Morte, o senhor está preso por distribuir atestado falso! Ah, e sinto muito pelo que o senhor passou.

O Doutor Álvaro Boa Morte se entregou sem resistência. Tom o algemou e nós três fomos saindo do consultório. Ao passarmos pela recepção, o Doutor Álvaro se virou pra recepcionista e disse rapidamente:

– Suellen, liga pro meu advogado. Aconteceu de novo.

– Então o playboy da quebrada aí é um policial disfarçado?

Eu fui me gabar pra recepcionista:

– Policial, não mais, sou um detetive particular. E você caiu no meu disfarce! Haha! Quem está rindo agora?

– Imagino o porquê de te mandarem embora da Polícia.

Antes de eu retrucar essa frase dela, Tom me apressou para irmos embora. Tom foi levar ele à delegacia em seu carro Maurício Porteau e eu acompanhamos no carro do Maurício.

Ao chegarmos na delegacia, Tom já levou o Doutor Álvaro para o Capitão Lester Gregade, que mandou irem para o interrogatório. O Capitão não queria que Maurício e eu fôssemos junto, mas Maurício insistiu dizendo que aquilo interessa ao caso dele. Então o Capitão deixou nós acompanharmos apenas na sala com a janela de vidro, onde as testemunhas ficam pra reconhecer os suspeitos.

Maurício e eu entramos naquela sala. A janela de vidro dava para a sala de interrogatório. Nela, estavam Tom e o Capitão Gregade sentados de frente para o Doutor Álvaro e seu advogado, que já estava esperando na delegacia.

Tom pôs o atestado falso que o Doutor Álvaro havia me dado em cima da mesa junto com um pen drive. O pen drive, provavelmente, teria a gravação da minha conversa com o Doutor Álvaro. Só que antes de Tom falar algo, o advogado do Doutor Álvaro interrompeu:

– Olha, policial, a gente já sabe o que tem aqui. Eu sei de toda a história, sei desse detetive particular aí e o porquê dele ter ido atrás do meu cliente. É por causa do fechamento daquela padaria que foi sabotada com ratos. E ele tem razão, tem algo muito maior aí por trás.

Caramba! Como ele sabe de tudo isso? Ele continuou:

– Meu cliente vai entregar a pessoa que pediu o laudo fraudado dos pêlos de rato, se vocês deixarem ele só com a fiança mínima, em liberdade.

O Capitão Gregade, duro como uma pedra, simplesmente respondeu:

– O caso da Padaria Nova Caledônia é um caso particular do detetive Jerry Bocchio e não tem nenhuma relação com a Polícia. Não tem o que negociar aqui com isso.

O advogado do Doutor Álvaro não perdeu o sorriso de alguém que está trucando:

– Ah, Capitão! O senhor está deixando um peixe grande ir embora em troca de uns atestados pra faltar no serviço?

– Se é um peixe grande desse jeito, porque seu cliente não teme uma represália contra ele?

– Digamos que uma represália iria expor ainda mais a pessoa em questão.

Tom e o Capitão saíram da sala por uns instantes e vieram falar comigo e com Maurício. Maurício, por ser o advogado da padaria, insistiu que eles aceitassem o acordo, já que o documento fraudado era a prova crucial. Eu sugeri o acordo porque tinha certeza que o nome da Vidente Solange seria dito (é, eu sei, ela sumiu da história até aqui, mas ainda tenho algo contra ela). Além disso, se o advogado disse que uma represália iria expor ainda mais, ou seja, a pessoa deve ser alguém da mídia.

O Capitão pensou por mais um tempo e resolveu aceitar, com algumas ressalvas:

– Muito bem, Doutor Álvaro, vamos aceitar o acordo. Porém, o senhor terá o passaporte apreendido até o fim da investigação e, se não for verdade, o senhor também será indiciado por obstrução da justiça.

Mais uma vez, o advogado falou pelo Doutor Álvaro, enquanto o mesmo assinava o acordo:

– Perfeito, Capitão! É muito bom negociar com vocês!

– Sem enrolação, quem ordenou a confecção do laudo falso?

– O homem que vocês procuram é um corretor de imóveis chamado Jorge Abílio.

Jorge Abílio? O cara que queria comprar a padaria? O mesmo que tinha mandado o Zé Maria colocar os ratos na cozinha. O advogado continuou:

– Ele costuma praticar esse negócio de especulação imobiliária num nível bem elevado, ou melhor, num nível bem baixo. Ele faz de tudo pra abaixar o preço do imóvel que ele quer comprar. No caso em questão, ele mandou um rapaz com intolerância a lactose comer na Padaria Nova Caledônia uma coisa com muita lactose pra fazer ele passar mal. No hospital, ele mandou o meu cliente assinar esse laudo fraudado dizendo que o rapaz tinha comido algo com pêlos de rato. Ele usou esse laudo tanto pra chamar a Vigilância Sanitária, quanto como prova no processo contra a Padaria Nova Caledônia, fazendo o preço do imóvel despencar.

Cassetada! Que plano diabólico! O Capitão Gregade saiu correndo da sala de interrogatório e expediu mandados de busca e apreensão contra o Jorge Abílio e o cliente que processou a padaria. O advogado Maurício Porteau saiu correndo com o celular na mão pra falar com o Seu Rogério sobre o caso. Enquanto isso, eu fiquei lá, só pensando que talvez ainda tinha uma peça faltando.

Jorge Abílio é um corretor de imóveis. O imóvel não vai pra ele, e sim para quem o contratou. Será que não é essa pessoa, ou empresa, que o contratou quem está por trás de tudo? Um mandante? Eu fui para a casa com essa dúvida ainda. Mas deixei que a Polícia se encarregasse do caso. Tom e o Capitão Gregade são competentes pra tocar isso. Se houver um mandante, eles vão descobrir.

No dia seguinte, fui ao meu escritório. E, do lado de fora, me esperando, estava o Seu Rogério, com uma cara não muito boa. Preocupado com o caso, eu já fui perguntando:

– Seu Rogério! O que aconteceu? Ainda não retiraram o caso?

– Não, J.B.! A promotora retirou a queixa. Estamos só esperando a Vigilância Sanitária emitir a papelada pra reabrirmos a padaria. Provavelmente na semana que vem.

– Que ótimo, Seu Rogério! Por que essa cara então?

Seu Rogério pegou o celular dele, deu o play num vídeo e virou o celular para mim. Era um vídeo do programa da Vidente Solange. Ela estava muito exaltada falando com o apresentador:

– Antes de eu começar o programa, eu preciso falar uma coisa pra vocês. Fernando, você já ouviu falar daquele detetive particular chamado Jerry Bocchio, né?

– Aquele que foi responsável pela prisão do Roninho? Sim, conheço.

– Pois então, os astros me disseram que ele é um homem que tem pacto com encostos. É assim que ele consegue prender gente importante. Minha dica pra essa semana é: não contratem serviços do detetive Jerry Bocchio! Caso contrário, um encosto vai entrar na sua vida e permanecer para sempre. E não existe simpatia para reverter essa situação.

Que droga! Nunca pensei que ser parecido com o John Constantine seria tão ruim para os negócios!

Continua...