Conversa de banheiro

Filarmino entrou no banheiro do shopping. Aquele banheiro era maior do que muito apartamento. Certa vez, ele ouviu de um coroa: "já rodei o mundo mas nunca vi banheiro tão grande quanto esse! E outra: temos que parar de bajular os americanos! O pior banheiro que conheci fica em Miami! Aquilo era menor do que a casinha do meu cachorro!"

Se um bon vivant que teve o prazer de explorar o banheiro miamense foi tão categórico, quem era Filarmino para dizer o contrário?

Vamos aos números: aquele banheiro tinha dez mictórios e doze sanitários. Eu chamo aquilo de "cabine", ou seja, o espaço onde fica o vaso, a lata de lixo e às vezes o papel higiênico.

Filarmino escolheu a primeira cabine da esquerda para direita e lá se trancou. Não, ele não estava necessitado. O problema era que havia um show na praça de alimentação e a barulheira beirava o ensurdecimento coletivo. Praça de alimentação nunca foi palco de show. Quem fica na platéia sofre com a péssima acústica local e principalmente com o falatório do público. Pior que essa ideia de jerico (que jamais aconteceu em Jericó) nunca sai de moda.

Não havia ninguém no banheiro, exceto Filarmino. Trancado e sentado na tampa do vaso, ele resolveu mexer no celular para fazer hora, enquanto o temporal não dava trégua (esqueci desse detalhe). A paz reinou durante três minutos, até o momento em que alguém entrou na "cabine" ao lado. Poxa, tinham onze disponíveis e distantes, mas o sujeito escolheu justamente o espaço vizinho.

Um som típico de banheiro. Zuup. Zíper aberto. Depois, blecqt. Tampa aberta. Na sequência, um longo suspiro e a irritante certeza: o cara realmente iria ficar por ali. Não obstante, decidiu puxar assunto.

- Essas pichações de banheiro são engraçadas, né?

- (silêncio)

- Tem muita poesia e denúncia explícita nessas mensagens! "Viviane, eu te amo!" O sujeito que escreveu isso sabe que a Viviane nunca lerá a mensagem. Mas ele fez questão de anunciar o amor para todos que frequentam esse sanitário. Isso é poético e grandioso!

- (extensão do silêncio)

- Tem outra aqui: "não frequentem shopping, visitem as cidades do interior!" Concordo! Isso aqui é uma gaiola dos homens, meu chapa! Quem visita shopping tem medo de ser feliz! A felicidade mora no ar puro, no cheiro de maresia, na gota de chuva, na serenidade do outono!

- (a perpetuação do silêncio continuava)

- Claro que alguns comentários são bobos! "Ligue para mim". Vou ligar agora e peço-lhe licença, meu bom homem, para colocar a conversa no viva-voz. Xi, o viva-voz está ruim. Vai ser no modo comum mesmo. Alô! É o Sr. Robertão? Opa, tudo bem? É que eu vi um anúncio seu. Sim, anúncio. Está escrito 'ligue para mim e venha descobrir o que é felicidade'. Onde? No banheiro do shopping. Pois bem, quero descobrir a felicidade? Como? Você se converteu? Amém! Agora...eu? Apagar essa mensagem? Eu não! Isso é seu legado, meu chapa! A felicidade...alô? Alô? Desligou!

- (risada sussurrante)

- Tá rindo, amigo? Viu só? O cara oferece a felicidade mas diz que "deixou essa vida há tempos". A verdade é uma só: toda porta de banheiro de shopping serve como um mural onde os sentimentos são expostos sem pudor.

- Um divã.

- Exatamente! Um divã acessível a todos! Um confessionário livre dos segredos! Você já se confessou?

- Não preciso de intermediários para falar com Ele.

- Concordo! Mas nem todos pensam assim! Daí a porta do banheiro surge como recurso, tendo um papel fundamental na sanidade e, quem sabe, santidade do povo! E melhor: de graça!

- Sim.

- No fundo, essas mensagens revelam o quanto somos solitários. De alguma forma, ou de várias formas, precisamos conversar, extravasar, botar para fora tudo aquilo que entulha e faz nossa alma ficar pesada. E essa necessidade em falar pode ser transformada numa mensagem escrita que será lida sabe-se lá por quem e que nunca será respondida. Uma coisa é certa: a solidão é irmã das respostas imaginárias, meu amigo.

- Olha, tenho que ir. Acho que a chuva já passou e...

- Escuta essa: "o gerente do cinema, casado com a dona da livraria, tem um caso com a chefe de segurança do shopping!" Ou seja, além da exposição de pensamentos e sentimentos, também encontramos na porta do banheiro os casos que não surgem ao acaso! De fato, notei que a tal chefe de segurança vive escoltando um gordinho careca do cinema! Será que...

- Eu realmente tenho que ir. Até mais.

- Espere. Preciso de um favor seu.

- Não posso lhe dar atenção. Tenho mil coisas para resolver.

- Não quero sua atenção. Preciso de outra coisa

- O quê?

- O papel acabou.

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 17/04/2024
Código do texto: T8043963
Classificação de conteúdo: seguro