Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capitulo III: Confissão Cedo

Eu fui até a Padaria Nova Caledônia depois daquela visita estranha da Vidente Solange. Aquela visita dela me deixou assustado na hora, mas no meio do caminho fui pensando sobre aquilo e me pareceu mais uma ameaça do que um aviso.

Enfim, quando cheguei na padaria, Seu Rogério estava me esperando na porta, do lado de fora, ao lado de um homem de um terno grafite, gravata azul, cabelo penteado pra trás, uma pasta marrom na mão e um sorriso típico de advogado. Se você não reconhece sorrisos advocatícios, eu não posso ensinar, somente detetives experientes, como eu, conseguem identificar um de longe. Quando encontrei com o Seu Rogério, ele me apresentou o homem:

– E aí, J.B.! Que bom que você veio! Esse aqui é o doutor Maurício Porteau, ele é o advogado da padaria.

– Boa tarde, detetive! É um prazer conhecê-lo. O Seu Rogério me falou muito bem de você.

Advogados! Eu não gosto de fazer meu trabalho com um deles por perto. Eles ficam toda hora me censurando. "Ain, não pode pressionar tanto o interrogado"; "Ain, isso é fazer ele criar provas contra si mesmo"; "Ain, você é uma pessoa só, não tem como fazer a estratégia do 'tira bom e tira mau'". Mesmo com a tentativa de lisonja e a mão estendida do advogado, não aguentei e falei para o Seu Rogério:

– Poxa vida, Seu Rogério! Você trouxe um advogado?

– Ele me disse que seria melhor pra não cometermos excessos com os funcionários.

– Era justamente isso o que eu temia.

– Mas ele tá certo, J.B.! Agora cumprimenta ele aí pra não ser mal educado!

– Ah, tá bom! Igualmente.

– Cumprimenta direito!

Acabei tendo que apertar a mão do advogado.

– O prazer é todo meu.

O advogado só deu uma risada e disse:

– Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.

– Hum... Isso é o que veremos.

Nós três entramos na padaria. O lugar estava apenas com algumas luzes acesas na área das mesas, onde estavam todos os funcionários lá. Zé Maria, Renatinha, Rodolfo, Valéria, Marisa, Tião e Caçula, todos sentados às mesas da padaria, conversando entre si. Todos eles me pareciam preocupados. Com o quê? Aí eu já não consigo dizer.

Seu Rogério parou à frente de todos e chamou a atenção deles, que se silenciaram quase que instantâneamente. Foi então que ele começou a explicar a situação:

– Pessoal, olha aqui. Eu sei que todo mundo aqui conhece o J.B., ele é um detetive particular que está investigando sobre o incidente com os ratos. Ele tem dúvidas sobre o que aconteceu e quer falar com vocês se vocês viram algo estranho no dia.

Logo após as palavras do Seu Rogério, a Renatinha, a caixa da padaria, falou para mim num tom de conformismo:

– Olha, Jerry, eu sei que você é amigo do Seu Rogério e quer ajudar, mas isso só aconteceu porque o Seu Rogério não deu ouvidos pra Vidente Solange. Isso é coisa dos encostos.

A fala da Renatinha foi a deixa pra eu começar:

– Renatinha, você é fã da Vidente Solange?

– Sim, sigo ela em todas as redes sociais. Você nunca viu o que eu compartilho dela?

– É, eu evito ficar nas redes sociais porque a rolagem da tela me dá tontura. Enfim, isso o que a Vidente Solange fala é só mídia e...

Então, o advogado Maurício, dando uma de advogado, me interrompeu:

– Detetive, desculpa interromper, mas não é bom ficar duvidando da fé das pessoas, hehehe. Pelo menos não agora.

Ah, mas como esses advogados são enxeridos! Eu não aguentei a interrupção e acabei respondendo:

– Eu sabia que uma hora ou outra você ia acabar fazendo isso.

– Não, detetive! É que pode dar mais problemas pra padaria.

– Então se eu vejo ela sendo ludibriada por alguém eu fico impedido de avisar?

– O senhor não tem provas da enganação.

– Como não tenho provas? É só olhar o passado dessa vidente. Ela foi desmascarada ao vivo na TV aberta. Além disso, ela foi no meu escritório hoje, antes de eu vir pra cá e tentou usar essa mesma história pra cima de mim.

A Renatinha deu um grito, assustada com o que eu disse:

– Ai, meu Deus! Os encostos estão atacando todo mundo! Eu preciso me benzer!

Eu precisei voltar pra falar com a Renatinha, pra tentar acalmá-la:

– Não, Renatinha! Não cai na conversa dessa mulher! Nem ela sabe explicar o que é um encosto. Quando você pergunta algo, ela se irrita e sai correndo.

Então o advogado interrompeu de novo:

– Detetive, você suspeita que a Vidente Solange está envolvida com isso tudo?

– Sim! É muita coincidência isso tudo acontecer assim, não?

Foi então que Rodolfo, o garçom, tomou a palavra:

– Eu acho que você tá desconfiando da pessoa errada, Jerry. Eu ficaria de olho é naquele moço que estava tentando comprar a padaria.

– Por quê?

– Uns dias antes dele fazer a primeira proposta pro Seu Rogério, ele veio aqui, pediu só um refrigerante e ficou uma hora inteira só com o refrigerante. Ninguém bebe um refrigerante em uma hora inteira. Então eu vi que ele ficava só sentado, tirando fotos com o celular.

Seu Rogério falou logo em seguida:

– Poxa vida, Rodolfo! Você viu o cara tirando foto aqui e não me disse nada!

– Ele estava no cantinho instagramável. Não falei porque tem um monte de gente que tem mania de fazer isso lá. Se eu soubesse que ia terminar nisso, teria falado.

A revelação de Rodolfo me deixou um pouco frustrado. Não sei, algo em mim queria que a Vidente Solange fosse a culpada. Aí eu iria desmascará-la mais uma vez. Mas enfim, pra ter mais certeza, perguntei a Rodolfo:

– E por que você acha que devemos suspeitar dele?

– É que teve mais gente que viu ele depois. Eu vi o Zé Maria conversando com ele depois de sair do trabalho outro dia.

Caçula, um dos ajudantes de cozinha, tomou a palavra também:

– É! Agora que eu me lembrei, ele tentou me abordar pra falar comigo também, mas eu estava com o fone de ouvido e o ônibus tinha acabado de chegar no ponto. Então eu só ignorei e fui embora.

Zé Maria, o chapeiro, estava encolhido. Parecia que não queria falar nada. Como Rodolfo disse que ele falou com o corretor imobiliário, eu precisei chamá-lo pra conversa:

– Zé Maria, o que o tal corretor disse pra você?

Zé Maria, relutante, respondeu:

– Nada, eu não dei atenção pra ele.

Bom, parece que eu estava errado. Depois de perguntar se mais alguém tinha algo a dizer e não obter resposta, chamei o Seu Rogério e o advogado pra falar. Seu Rogério dispensou os funcionários e agradeceu pela ajuda.

Todos foram se levantando e saindo, menos o Zé Maria. Parecia que ele ainda queria dizer algo. Ele esperou todos os outros funcionários saírem e depois veio até nós três, Seu Rogério, o advogado e eu. Ele parecia muito acanhado e com cara de arrependimento. Seu Rogério percebeu o modo como ele estava e perguntou:

– Zé Maria, está tudo bem?

– Não, Seu Rogério. Na verdade, eu queria falar sobre a minha conversa com o corretor. Só que eu queria que o senhor me escute até o fim antes de qualquer coisa.

– OK, sem problemas.

Zé Maria deu um suspiro e começou a falar:

– O corretor veio falar comigo dizendo que percebeu que eu ficava irritado com as piadas que você ficava fazendo comigo. Eu tentei falar que não ligava muito, mas ele insistiu. Falou pra mim que entendia de psicologia e mais umas outras coisas. Ele acabou me convencendo a querer dar o troco. Então ele me deu uma caixa e mais quinhentos reais e disse pra eu deixar ela aberta na cozinha. Eu não aceitei de primeira, mas ele ficou insistindo de novo, falando que era só uma brincadeira e coisa e tal. E eu acabei aceitando. Eu coloquei a caixa aberta e só depois que eu vi que saíram dois ratos de dentro dela.

Então Zé Maria juntou as mãos em forma de prece e olhou de um modo dramático para o Seu Rogério:

– Eu não sabia que ia acabar nisso! Desculpa aí, por favor!

Seu Rogério pareceu chocado com a confissão de Zé Maria. O silêncio de Seu Rogério induziu o advogado a perguntar:

– Zé Maria, quando isso aconteceu?

– Foi dois dias antes da Vigilância Sanitária aparecer. Eu juro que não sabia o que tinha na caixa!

Esses advogados são muito frios! Num momento desses esse cara vai perguntar sobre data? Seu Rogério só se sentou numa cadeira e disse:

– Zé Maria, é melhor você ir pra casa agora. Depois eu te chamo pra conversar.

Zé Maria só foi embora deixando nós três na padaria. Foi então que o advogado tentou começar o assunto:

– Olha, Seu Rogério, isso não é tão ruim quanto parece. O detetive Jerry Bocchio, no final está certo, alguém veio sabotar a padaria. É só termos como provar e eu consigo convencer o rapaz a cancelar o processo. Foi bom o detetive ter pedido isso.

Eu precisei dar a minha opinião sobre o assunto:

– Não sei não, doutor Maurício! Isso ainda está estranho, parece que está faltando algo.

– Você ainda está desconfiado da vidente, detetive?

– Não sei, eu só não consigo enxergar uma motivação pro corretor fazer isso do nada.

– Como não? Ele queria baratear o preço da padaria porque o Seu Rogério não quis vender. Isso aí é uma coisa que alguns corretores imobiliários desonestos, pra não dizer criminosos, têm costume de fazer.

– Sim, eu sei. Só que eles fazem isso a mando de alguém, alguém que talvez esteja de olho na padaria.

– Hum... Acho que eu sei o que está acontecendo. Você está frustrado porque a solução foi fácil demais. Bom, eu não tenho tempo pra discutir teoria da conspiração. Eu vou correndo pro meu escritório pra encomendar uma reunião com os representantes do rapaz que está processando a padaria.

Então o advogado pegou a pasta dele e foi embora. Eu só fiquei vendo o Seu Rogério sentado, com cara de decepção com o que havia ouvido. Achei melhor acompanhar o Seu Rogério até sua casa e encerrar o dia por ali mesmo.

Durante a ida até a casa do Seu Rogério, ele me disse que não sabia o que fazer em relação ao Zé Maria. De um lado, ele entendeu sobre as piadas irritarem ele. Mas por outro, ele disse que o Zé Maria além de ser um funcionário um pouco displicente, ainda ter aceitado aquilo deixou o Seu Rogério irritado.

Eu só fui para o escritório no dia seguinte. Eu ainda estava com aquela sensação de que estava faltando algo no caso. Parecia que tinha uma conexão que eu estava deixando de lado. Mas, como sugeriu o doutor Maurício, talvez fosse só um desejo de que tenha algo mais mesmo, devido a tudo ter se resolvido muito fácil.

Eu estava matutando sobre isso no meu escritório quando, lá pelas dez da manhã, ouvi um batido forte na minha porta. Fui atender e era o doutor Maurício, com uma expressão mais séria. Eu me espantei com a presença dele.

– Doutor Maurício! Deu tudo certo lá?

– Eu preciso falar com você, detetive!

– Eita, que cara é essa? Eu não fiz nada não, só levei o Seu Rogério pra casa.

– Acho que você está certo, tem algo mais nessa história.

Depois que ele disse isso, eu deixei ele entrar. Nós fomos até minha mesa, ele pôs a pasta dele em cima e puxou um papel de dentro.

– Eu fui falar com os representantes do rapaz que está processando a padaria. Eles disseram que não iriam retirar o processo. Então eu pedi as provas que eles teriam e eles me deram uma cópia do exame que ele fez.

– Aquele que dizia que ele ingeriu pêlos de rato?

– Esse mesmo! O exame não detalha muita coisa, mas olha o responsável pelo exame.

– Nossa! Ele tem um número no lugar do nome!

– Não! Esse é o número do registro no Conselho de Medicina dele!

– Aaaah! E isso quer dizer o quê?

– Eu pesquisei esse número e vi que é o Doutor Álvaro Boa Morte. Ele já teve problemas na justiça anteriormente.

– Também, com um nome desses! Quem vai confiar num médico que se dá o nome de "Boa Morte"?

– "Boa Morte" é um sobrenome real. Tem origem portuguesa.

– Sério? Caraca, que família é essa? Devem ser a inspiração da Família Addams.

– Olha, detetive, concentra aqui! Esse médico tem problema com a justiça por falsificação de atestados.

Opa! Quer dizer que o documento tem chance de ser falso? Isso me mostrou um novo caminho para continuar a investigação.

– Bom saber! Eu vou dar um jeito de falar com esse médico. Onde ele atende?

– Numa clínica no centro da cidade. Mas eles não devem ser muito receptivos com detetives particulares ou policiais.

– Ah, não se preocupe, doutor Maurício! Eu sou um mestre dos disfarces.

O doutor Maurício ficou um pouco em silêncio e respondeu depois.

– Olha, talvez seja melhor eu ir junto.

Ai, que saco! Acho melhor tentar convencê-lo do contrário:

– Doutor Maurício, não que eu tenha algo contra você, mas eu não gosto de trabalhar com advogados do lado.

– Não se preocupa que eu não vou te atrapalhar.

Ele já disse isso antes. Enfim, agora eu tenho uma nova pista e isso me deu um ânimo. Vamos ver se esse médico ainda está bom em falsificação. A visita não vai ser do jeito que eu queria, mas é melhor do que nada.

Continua...