as lêndias e a inundação no apt 403

04/02

“Nossa quando acordei hoje tava tão feliz, não pensei que ia acontecer tudo isso” - Camilla (22h35 da noite)

Hoje, fui surpreendida com a notícia de que portava uma sociedade de lêndeas na minha cabeça. Tive que comprar um remédio para acabar com o happy-hour acontecendo no meu couro cabeludo, o que foi puramente humilhante, porque pedi um remédio forte para “adultos” e a farmacêutica disse “não existe remédio para lêndea para adultos, é raro acontecer”. Embora, essa informação não tenha sido surpreendente - afinal, o termo “raridade” parece que não existe no apartamento 403 - serviu para fortalecer a humildade.

Mas, para consolidar meu ego, prefiro culpar a Jéssica, a ex moradora do 403 que provavelmente casou e se mudou, conclusão tirada com a observação da conta do Spotify, que acidentalmente Jéssica deixou logada na TV. Só Jéssica poderia deixar os piolhos criarem laços e se prosperarem naquele apartamento. Não tem outra explicação de como lêndeas foram parar justamente no quarto andar de um prédio. Elas não voam.

Não contente, Camilla também pegou lêndea. Somos tão amigas que provavelmente a minha lêndea fez amizade com a dela e resolveram morar juntas também. Consigo até imaginar isso acontecendo:

- Oi, qual o seu nome?

- Camilêndia e o seu?

- Elêndia, prazer. Quer tomar uma Eisenbahnêndia?

- Amei, vem aqui em casa e a gente chama uma galera.

- Fechô.

E provavelmente foi assim que as nossas sociedades se uniram.

AINDA 04/02

(um pouco depois de descobrirmos que nossas cabeças estavam sendo ocupadas por um grupo organizado de lêndeas MST, Movimento dos Trabalhadores Lêndeas Sem Terra)

Quando eu e Camilla passamos o remédio power para crianças de 10 anos na cabeça, tivemos que tirar no chuveiro. Nosso banheiro já estava alagando durante um tempo, quando tomávamos banho. Camilla disse, alguns dias atrás, que tinha adquirido uma técnica para o banheiro não alagar. Ela ligava o chuveiro, molhava o cabelo, fechava, passava shampoo e depois ligava para tirar. Particularmente, amei essa técnica porque a conta de água viria bem mais barata.

Isso me fez lembrar de um dia, que fui tirar o lixo na garagem do prédio e tive acesso ao lado proibido dele. Para contexto, nosso prédio tem dois lados: o nosso lado, da classe média-baixa, e o outro lado, da classe alta da Vila Mariana. O lado da classe alta tem piscina na cobertura, uma academia com muitos aparelhos para braço e perna, quatro elevadores, duas churrasqueiras, uma sala de jogos, uma sala de yoga, um cinema ao ar-livre, um cassino (capaz até de você encontrar os macacos do Madagascar fingindo serem milionários, jogando poker com alguém) e uma garagem com lixeiras (que, particularmente, é o luxo que tenho mais inveja). E o nosso lado tem uma academia com duas bicicletas, duas esteiras (justamente para eu e Camilla fazermos juntas) e dois aparelhos aleatórios que a gente não sabe usar… e tem um sofá e uma mesa que chamam de “coworking”.

Enfim um dia, me liberaram para jogar o lixo na lixeira do outro lado - quando usualmente temos que tirar o lixo, é preciso dar uma mega volta por fora do prédio pra acabar jogando o lixo na calçada, o que poderia ser facilmente resolvido apenas se eu jogasse meu lixo pela janela do quarto andar, que também resultaria em estar na calçada.

Mas, quando joguei o lixo na lixeira luxuosa do outro lado, tive que subir por um dos quatro elevadores, e nisso entrou um moço (esses multimilionários da classe alta da Vila Mariana), que teve o seguinte diálogo comigo:

- Seu apartamento tá sem água? Estamos sem água no 20º andar.

- Não, estamos com água…

- Você não mora no 20º? Perguntei para um amigo do 21º e ele também está sem… deve ser um problema desses andares.

- Pode ser.

E saímos. Claramente não falei que morava do outro lado, no 4º andar, queria aproveitar meus poucos minutos sendo moradora bilionária do outro lado. Mas confesso que pensei: “O que adianta ter uma lixeira se não tem água?”. E nós, do 403, temos muita água. Vivemos de muito luxo.

Literalmente, porque hoje nosso banheiro inundou. E nossa cozinha.

Era 22h35 e estávamos eu e Camis com um rodo (quando digo um, é literalmente. Nós só temos um) tentando tirar a água misturada com uma substância preta estranha, gerada provavelmente pela Jéssica. Falhamos miseravelmente. Era tanta água que já nem dava para pensar na possibilidade de contar com a natureza, e uma ebulição de Deus. Tivemos que ir dormir com a água espalhada pelo nosso quadrado.

Deitadas na beliche, nosso último diálogo foi:

- Que bom que nossa cama é de ferro - eu disse, pensando estarmos seguras assim, porque era mais difícil da cama estragar.

- Elena, você já tá pensando no pior? Na cama despencar e me esmagar?

Lembrei imediatamente que não tinha prestado atenção em nenhuma aula de química, e quase reprovei o terceiro ano por isso. A cama ser de ferro, na verdade, é uma coisa péssima, porque isso significa que a água vai enferruja-la e posso cair em cima da Camilla.

Eis que, 23h eu estava pesquisando no google: quanto tempo demora para um ferro enferrujar dentro da água?

O que não gerou nenhuma resposta, igual todas as outras pesquisas que encontravam-se no meu histórico: meu apartamento inundou o que fazer, como tirar água sem ralo e sem balde, dormir com água no piso pode causar problemas de saúde e etc.

05/02

Acordei com a Camilla comendo ovo, como se já estivesse adaptada a essa vida subaquática. Eu estava quase dando oi para o Bob Esponja e preparando-me para começar meu nado sincronizado até a cozinha para fazer meu café.

Comecei o dia com o Rodolfo (o rodo, resolvi nomeá-lo porque estávamos passando muito tempos juntos), tentando tirar água da cozinha para pelo menos fazer meu café sem escorregar e quebrar um dente na pia. O que funcionou, porque parecia bem melhor.

Camilla, que já havia desistido de tudo, vestiu sua máscara de mergulho e foi trabalhar. Enquanto, eu, que já eram 5h30 da manhã e tinha dez minutos para estar pronta e chegar no metrô, resolvi tirar a água do banheiro com um copo de plástico velho.

Quando me dei conta, eram 5h35 e eu estava de pijama, tomando café frio e rezando para que a ebulição mágica acontecesse quando voltasse pra casa 13h. Nesses poucos minutos, pensei, “se tudo der errado, eu poderia transformar o apt 403 em negócio e oferecer um curso de Mergulho em Espaços Confinados”.

Lado bom de tudo isso: esqueci completamente da coceira na cabeça. Mas, provavelmente, as lêndeas estão organizando uma ópera subaquática para narrar essa épica história da inundação.