Jerry Bocchio e a Ameaça no Reality – Capitulo II: O Programa

No dia em que Anne Gonzalo, produtora da Glamour TV, me contratou para investigar uma ameaça a uma emissora de TV a cabo, fiquei muito empolgado. Confesso que foi até difícil pegar no sono, o que me ajudou foi o aplicativo que altera vozes que eu baixei no meu celular. Eu ficava dizendo frases e mandando o aplicativo alterar minha voz nas gravações. Eu achei bem engraçado, ajudou a aliviar minha ansiedade.

No dia seguinte, estava eu, em meu escritório, aguardando o motorista da emissora. Ele chegou na hora combinada. Se apresentou, provou para mim que era mesmo da emissora, pegou minhas malas para guardar no porta malas do carro e me levou até o aeroporto. Durante a viagem ele não falava nada. Geralmente, motoristas particulares são assim mesmo. Deve ser coisa de gente rica, não gostar de conversa, então só contratam gente calada.

Chegando ao aeroporto, não precisei passar por todos aqueles trâmites comuns que um eu passo quando compro uma viagem parcelada. Foi bem mais rápido. Perto do embarque estava Anne me esperando conforme o combinado. Embarcamos no avião e ela também ficou calada. Só mexendo do tablet dela. Só que eu precisava de algumas informações, eu nunca assisti esse reality show. Então, tentei puxar assunto:

– Escuta, Anne. Esse programa "Jantando Com o Ex", do que se trata?

Sem tirar os olhos do tablet, ela foi respondendo:

– Você nunca assistiu, detetive?

– Não. Não sou muito fã de realities. Nem de fofoca, celebridades etc.

– Não é fã de fofoca, mas ficou famoso por causa delas. Bastante irônico, não?

– Olha, acho que vai ser mais fácil se me falar como funciona. Talvez tenha alguma relação com a ameaça.

– Nós convidamos homens e mulheres que saíram recentemente de relacionamentos. Eles passam um tempo num lugar turístico se conhecendo pra tentar uma nova relação. Aí, se der indícios de que os casais estão se formando, eles vão para um encontro final num jantar pra saber se vai ser definitivo. Durante os jantares no restaurante os ex deles aparecem lá.

– Pra que isso?

– Pra dar conflito.

– Caramba, isso é um pouco sádico, não? Por que alguém aceitaria participar disso?

– Tudo é show business, detetive.

Essa última frase meio atravessada de Anne, junto com sua postura de que não tava muito afim de assunto, me convenceram a terminar a conversa. Mas daí pode ser o começo da minha linha de investigação.

O avião chegou ao local. Eu disse que ia pro Caribe, mas não especifiquei o local, né? Nós desembarcamos em Aruba. Anne me disse que lá é onde ocorreriam as gravações. Eu não detalhei porque sempre pensei que o Caribe fosse um lugar só, não vários países e ilhas juntos. Eu deveria mesmo ter estudado geografia na infância.

Nós fomos ao restaurante onde ocorreriam os tais "conflitos" que o programa tanto busca. Anne me disse que o diretor do programa nos encontraria lá porque queria me conhecer. Quando entrei lá, vi um ambiente um pouco descolado pra ser chamado de restaurante chique. Tinha um bar com alguns barmans fazendo drinks, umas mesas com temas praianos espalhadas pelo salão, garçons andando pra lá e pra cá e uma porta grande com um segurança ao lado indicando ser um espaço VIP.

Anne me disse que o diretor não estava lá no momento, mas que iria chegar em instantes, então ele reservou uma mesa para que aguardássemos ele. Anne falou com um garçom que nos acompanhou até a mesa e logo foi puxando a maquininha pra anotar algum pedido. Anne ia dispensá-lo, mas eu estava com sede durante toda a viagem, além disso, eu também queria mostrar minhas habilidades como poliglota. Puxei minha apostila do curso de espanhol que precisei fazer pra investigar um caso e falei:

– Holá... mesero... Yo quiero una... Cueca Cuela con pedritas de hielo... Por favor.

Depois disso, o garçom ficou olhando pra mim igual aquele rapaz do meme que não entende nada. Aí Anne interveio:

– A Coke with ice, please.

Aí o garçom foi embora e eu é quem não estava entendendo mais nada:

– Eles falam em inglês aqui, é? Caramba, eu trouxe a apostila errada!

– Não, eles também falam em espanhol aqui. Acontece que isso que você falou não era nada! "Cueca Cuela"? Que negócio foi esse?

– Aaaah! Nossa, será que era por isso que aquela moça mexicana que eu precisei investigar mês retrasado dizia que me achava engraçado? Eu achei que meu disfarce tava indo bem, olha só! E pensar que eu fiz um curso intensivo de dois meses de espanhol pra investigar esse caso!

– É sério que você achou que ia aprender espanhol em dois meses?

– Era o que eles prometiam, ué! E era um curso intensivo. Como eu vi "intensivo" na propaganda do Google, eu pensei que estava aí a minha solução. Tá certo que eu não vi todo o material, mas...

– Olha lá, detetive, ele vem vindo.

Olhei para trás e vi um homem um tanto excêntrico andando em direção à nossa mesa. Ele andava com passos ritmados, como se estivesse num videoclipe, só que sem música. Talvez na cabeça dele devia estar tocando alguma. Não julgo, às vezes acontece comigo também, só que com músicas muito chatas. Ele é aquele típico homem de meia idade que não aceita a chegada do tempo: cabelos tingidos, um topete chamativo, óculos escuros dentro de um ambiente e uma roupa parecida com as daqueles figurões de Las Vegas. Quando chegou perto, já foi falando num tom muito alto, quase gritando:

– Ah, Anne! Está aí com o nosso detetive! Por que não me apresenta?

Com uma feição um pouco contrariada, Anne se levantou e disse:

– Ronald, esse é o detetive que eu comentei, Jerry Bocchio. Jerry, esse é o diretor do programa, Ronald Barros Junior.

– Jerry Bocchio, muito prazer! Pode me chamar de Roninho. Eu vi muito sobre o senhor quando investigou o romance entre Alice Harback e Allan Tresekos. Foi um trabalho excepcional!

Ai, que droga! O pessoal só me conhece por isso?

– O prazer é meu, Ronald.

– Roninho, por favor. Faço questão.

– OK então. Roninho, o prazer é meu. Só que é o seguinte, nesse caso eu também descobri que o General Ivan Harback está vivo. A parte do romance é a parte secundária do caso.

– Ah, detetive! Isso o que você chama de "secundário" é o que o público gosta de verdade. O público gosta de ver casais em crise logo depois de começar um relacionamento, briga com gente alcoolizada por motivos passionais, talvez até com agressão física, descobertas de traição, tudo isso. Eu até queria te perguntar se você não tem mais casos assim, detetive. Quem sabe a gente não faz um programa novo com isso, não é mesmo?

Foi então que Anne interveio de novo:

– Na verdade, Roninho, eu trouxe ele aqui pra investigar a ameaça que a gente recebeu.

– Poxa vida, Anne! Você está mesmo querendo continuar com a produção do programa? A gente recebeu uma ameaça, é melhor cancelarmos essa temporada. Pessoas aqui correm perigo!

Que estranho! O mesmo cara que, instantes atrás, disse que não liga de expor vidas e humilhar pessoas em prol da audiência agora fala de proteger vidas? Tem uma dualidade aí.

– Então, Roninho, eu já tinha te dito na última reunião que não depende só de você. A emissora quer o dinheiro do patrocinador, que quer essa temporada. Então eu trouxe o Jerry Bocchio aqui por enquanto. Caso ele descubra algo, a gente chama a polícia.

– Ai, ai, viu? Eu estou com um mal pressentimento sobre isso! Ainda acho melhor cancelarmos essa temporada. Bom, de qualquer modo, foi um prazer conhecê-lo, detetive. Eu preciso conversar com o dono do restaurante pra combinar como tudo vai ser gravado. Até mais!

Roninho saiu e eu não aguentei ficar sem falar nada:

– Que sujeito excêntrico, hein Anne?

– Ai, detetive, a gente não escolhe o patrão. Mas, enfim, você já tem algum plano em mente?

– Bom, nesses últimos seis meses que eu fiquei trabalhando só com casos de supostas traições, porque não apareciam outros, eu vi que esse negócio de ex aí pode dar muito problema. Acho bom dar uma olhada nesses ex aí. Se eu der sorte, já mato a charada logo de cara, se não, já tiro isso da frente, pelo menos.

– Então, detetive, temos um problema. Os ex ainda não estão aqui e só o pessoal do casting sabe quem são eles. E os participantes.

– Bom, então me deixa falar com os participantes. Eu posso conseguir informações sobre o relacionamento anterior deles.

– Está bem então. Mas eu vou com você.

– Ué, por quê?

– Depois daquela do "vocalista de death metal", é melhor eu estar junto pra ajudar. Tome, aqui está a chave do seu quarto do hotel. É o mesmo de onde a equipe toda está instalada. Amanhã eu junto os participantes para você conversar com eles.

– É um caso envolvendo ameaça, Anne, pode não ser seguro.

– Não se preocupa comigo não, detetive. Agora termina aí sua "Cueca Cuela" pra gente ir pro hotel.

Eita, que coisa, viu? Tá parecendo o Capitão Gregade comigo. Ela parece bem chateada com o trabalho dela também, aquela conversa com o diretor deu pra perceber um toque de insatisfação.

Agora é se preparar pra amanhã, quando vou interrogar os participantes do reality. A minha intuição diz que tem coisa quente aí. E vou tentar convencer a Anne a não se envolver muito para a própria segurança dela. Ela parece ser firme na decisão dela, mas eu tenho que tentar.

Continua...