Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capitulo V: A Sabatina
O dia amanheceu. Levantei confiante, sem medo do que poderia acontecer na sabatina. O caso ainda não estava solucionado, mas minha intuição, ah, minha intuição, dizia que o que eu estava prestes a fazer era o caminho certo.
Saí da minha casa e fui andando em direção ao meu escritório. Mas não sem antes passar na Padaria Nova Caledônia e tomar meu café da manhã habitual. O Seu Rogério já chegou me perguntando quando eu ia dar uma entrevista sobre o caso. Eu prometi a ele que se alguma emissora de TV me procurasse, eu iria correndo para a fachada da padaria.
Cheguei em meu escritório, peguei as cartas que estavam guardadas em uma gaveta com chave. Deixo essa gaveta apenas para minhas coisas importantes, como provas de casos grandes, cartas de ameaças recebidas e cupons de desconto da praça de alimentação do shopping da cidade. Repassei elas mais uma vez e pensei bem no que iria falar na sabatina, afinal, tudo o que eu disser será avaliado pelo Capitão Lester Gregade.
O Capitão Lester Gregade é um homem que segue as regras à risca. Ele não tolera brechas. Segundo ele, se a Polícia não mostrar que está cumprindo seu papel dentro da lei, a população nunca vai respeitar e colaborar com a Polícia. Eu até concordo em partes com ele, mas e se as regras forem feitas por pessoas que não gostam de seguir regras, como ficaríamos? Por isso que saí da Polícia, às vezes, as regras parecem estar do lado errado da história.
Peguei minhas coisas e saí do escritório. Fui andando em direção à delegacia onde trabalhei. Quando cheguei lá, vi que poucas coisas haviam mudado. Algumas pessoas novas, muitas pessoas conhecidas, até a cela onde ficavam os presos temporários tinha um rosto conhecido, um cara que tinha um bom advogado. A mesa onde eu trabalhava agora era ocupada por outro investigador, ele me parecia ser bem mais sério do que eu. Talvez seja perfeito para o Capitão Gregade.
Eu fui até a mesa da secretária e era a mesma, Maria Silveira. Ela é uma pessoa legal, mas às vezes tem a incômoda mania de ser muito debochada. Quando ela me viu chegando, já foi logo falando:
– Ah, Jerry, você aqui de novo? Nem como detetive particular você se livra de problemas, hein?
– Que bom ver você também, Maria. Eu estou aqui pra falar com o Capitão Gregade.
– Já tá todo mundo lá na sala de reuniões esperando você. É só ir lá.
– Ué, não vai me levar até a sala?
– Ué, por quê? Você já sabe o caminho.
Então lá fui eu, na sala de reuniões da delegacia. A porta estava aberta e uma mesa enorme estava ocupada faltando apenas um lugar, que supus que era o meu. Nela, estavam o Capitão Gregade, Thomas Mangalvo, um promotor do Conselho de Justiça, Alice Harback e até o Allan Tresekos e seu advogado. Allan estava com um olhar muito temeroso, afinal, ele acreditava que eu iria expor a teoria maluca dele, de que Alice Harback era um homem disfarçado.
Assim que me sentei, o Capitão Lester Gregade, sério como sempre, olhou fixamente para mim e começou a falar:
– Antes de nós começarmos, quero que você me escute bem, Jerry Bocchio. Não é só porque o senhor está fora da corporação que o senhor pode fazer tudo do jeito que deseja. Nós temos leis pra cumprir, todos nós. Investigação não te dá carta branca para importunar ninguém. Estou sendo claro?
Agora era a hora do show:
– Sim senhor, sempre tive consciência disso. Mas, em minha defesa, eu gostaria de falar duas coisas: primeiro, que eu não importunei ninguém, a senhora Alice Harback não estava presente em quase nenhum dos lugares onde investiguei, segundo, quando ela ficar sabendo da minha linha de investigação, vai querer retirar a queixa na hora.
Nesse momento, todos os olhares vieram para mim com curiosidade, até o de Allan. Então, o Capitão Gregade perguntou:
– Posso saber que informação tão estupefaciente é essa?
– Segundo as informações que eu já apurei, tenho muitos motivos para acreditar que o General Ivan Harback está vivo.
Geralmente, num filme, nessa hora todos os personagens fariam um "ooooh" uníssono e a trilha sonora tocaria um "tan, tan, tan" indicando um clímax. Infelizmente, não foi bem assim. O Capitão Gregade fechou ainda mais a cara, Alice Harback começou a rir de deboche e o Allan virou para seu advogado e soltou um "meu Deus", de novo orando.
– Mas esse detetive é um idiota mesmo, como que vocês, da Polícia, aceitaram um sujeito desse para trabalhar? Eu enterrei meu marido, vi o corpo dele no caixão, como que esse sujeito fala que ele está vivo?
– Como que o senhor pode fazer uma afirmação dessas, senhor Jerry Bocchio? – Perguntou o Capitão Gregade num tom ainda mais firme.
Eu peguei as cartas que Allan havia me dado, retirei do maço a carta onde ele dizia que já estava no país e que iria para o hospital e entreguei ela nas mãos do Capitão Gregade.
– O General Ivan Harback não morreu na guerra, ele desertou. Essa carta escrita por ele diz que ele havia acabado de chegar no país e que iria visitar Alice Harback no hospital.
– Como você teve acesso a isso? – Perguntou Alice Harback, perplexa.
– Responda apenas a mim, Jerry Bocchio. Isso não prova que ele está vivo. – Disse o Capitão Gregade, ignorando o espanto de Alice.
– Eu sei, mas o paradeiro do corpo do General Ivan Harback é desconhecido. Ele não foi enterrado no Cemitério Militar, pois perdeu os direitos após desertar, o que significa que entre a saída dele e sua suposta morte, teve tempo do Exército fazer todo o trâmite de retirada de seus direitos. Além disso, o velório dele foi fechado, apenas a família mais próxima teve acesso ao seu corpo, mais ninguém. E também não existem registros do óbito dele no Exército, ele apenas é dado como desaparecido.
– Jerry, Jerry. Eu dizia a você desde quando você trabalhava aqui. Você é muito criativo, mas você deixa ela afetar demais o seu trabalho. A sua história está muito mirabolante.
– Isso mesmo! Prendam ele agora! – Gritou Alice, com uma voz firme e tom de autoridade.
O grito e a postura de autoridade de Alice causaram um estranhamento no Capitão Gregade. Ele ficou encarando Alice, que logo voltou para sua pose de velhinha rabugenta normal.
– Mas desta vez, eu vou te dar uma chance. Mangalvo, procure o nome do General Ivan Harback no sistema de controle de óbitos. Veja o que você encontra lá.
– Sim, senhor! Agora mesmo!
Thomas saiu da sala correndo, com um ar de confiança, foi até sua mesa e começou a olhar em seu computador. Ficou uns dez ou quinze minutos lá, ele sempre fazia questão de ser detalhista, imprimiu um papel e logo voltou correndo. Durante todo esse processo, Alice olhava tentando disfarçar sua apreensão, mas o suor frio e o tremor nas mãos indicava que ela estava acuada. Ao voltar pra sala, Thomas entregou o papel nas mãos do Capitão Gregade.
– Senhor, o sistema de controle de óbitos não tem registro do General Ivan Harback.
– Estranho, será que foi um erro no sistema?
– Eu vasculhei várias vezes, senhor.
– Senhora Harback, tem uma explicação que gostaria de dar?
Os olhos de todos se voltaram para Alice, que agora não tinha mais como esconder seu medo.
– Nós... Cremamos ele.
– Mesmo assim, isso estaria constando aqui.
– É que... Nós... Jogamos suas cinzas no mar.
O Capitão Gregade foi ficando mais desconfiado ainda das reações de Alice, foi aí que eu aproveitei:
– Capitão, porque o senhor não solicita a presença da família Harback para depoimento? Eles devem saber de algo que a senhora Harback não sabe. – Joguei verde pra colher maduro.
– Bom, acho que vou ter que seguir sua sugestão, Jerry. Mangalvo, vá agora...
– Não ouse incomodar minha família! – Interrompeu Alice, em tom ameaçador.
– Senhora Harback, acho que a senhora não está compreendendo totalmente o que está se passando. O detetive Jerry Bocchio está me trazendo provas de que seu marido ainda está vivo depois de ter desertado de uma guerra. E as evidências que pegamos aqui estão fazendo esse caminho parecer ainda mais possível. Se alguém de sua família estiver sabendo de algo e escondendo o paradeiro dele, isso pode incorrer em muitos crimes. Se não for verdade, temos que eliminar essa teoria. Então seria bom chamarmos sua família aqui também.
O Capitão Gregade virou-se para Thomas de novo para dar a ordem quando Alice, desesperada, levantou num movimento brusco da cadeira e interrompeu com outro grito, só que agora com uma voz muito mais grossa:
– Não! Eu confesso!
Alice Harback põe uma de suas mãos na cabeça, puxando seus cabelos para trás e tirando-os, revelando que seus cabelos eram, na verdade, uma peruca. Depois disso puxou a pele de seu rosto, revelando que era uma máscara de maquiagem. Após isso, com a peruca em uma mão e a máscara na outra, de cabeça baixa ela, que agora parecia ser mais ele, disse:
– Eu sou Ivan Harback!
Todos os outros na sala, falaram um uníssono "ooooooh" e depois logo ouviu-se um "tan tan tan", que eu percebi que era o toque do meu celular indicando que eu estava sem crédito.
– Hehehe, desculpa aí pessoal, esqueci de colocar o celular no silencioso... Wow! Como é que é?
– Ivan Harback! Acho que o senhor nos deve muitas explicações. – Disse o Capitão Gregade, ainda perplexo com a situação.
– A Alice nunca se curou, ela morreu no hospital mesmo. Ela não deixava ninguém visitá-la porque eu estava lá com ela e ela tinha medo que alguém me visse e chamasse as autoridades. Tudo isso foi ideia dela, ela não queria que eu fosse preso depois de passar tanto tempo na guerra, então, antes de morrer, ela falou para eu assumir a identidade dela até que eu conseguisse limpar meu nome no Exército.
– Como o senhor quer que acreditemos nessa história, General?
– Primeiro, por favor, não me chame mais de General, não presto mais serviços ao Estado, nem quero prestar mais. Segundo, eu tenho uma gravação feita por ela enquanto estava no hospital.
Ivan puxou o celular e mostrou um vídeo salvo. Nele, a verdadeira Alice Harback, bem fraca, falava com um pouco de dificuldade para a câmera:
"Olá, eu sou Alice Harback, se meu marido está mostrando esse vídeo a você, é porque você deve ter descoberto nosso combinado. Eu autorizei meu marido a assumir minha identidade para que ele não seja preso. Eu prometo que quando ele conseguir arrumar a situação dele junto ao Exército, ele vai revelar toda a verdade. Mas eu não quero que ele fique longe mais da nossa família."
Sua cabeça explodiu agora? Porque a minha, sim. Quer dizer que o doido do Allan tinha razão quanto à Alice ser um homem disfarçado? Só que é ainda mais doido porque o homem é o marido dela. Após o vídeo, Ivan continuou:
– Eu desertei e voltei porque Alice tinha parado de responder minhas cartas. Então fiquei preocupado que pudesse ter sido o câncer. Mas quando cheguei no hospital, ela tinha acabado de dar entrada, o que significa que ela só não estava respondendo minhas cartas mesmo.
Nessa hora eu fiquei incomodado com algo. Era um momento de revelação de verdades, eu tinha que falar outra coisa que eu havia percebido. Além disso, eu queria um clímax pra mim:
– Ela não estava respondendo as cartas porque teve um caso com Allan Tresekos.
– O quê?
OK, OK, fiquei empolgado e falei demais. Ivan e Allan estavam querendo me matar e o Capitão começou a falar o clássico "ai, meu Deus" dele. Mas, já que eu tinha começado, né?
– É, né? É que ela não respondia porque o Allan interceptava o rapaz que entregava as cartas e pegava as cartas pra ele. Percebi isso porque as datas de umas cartas eram anteriores à entrada de Alice no hospital, e o Allan me disse que só fez isso depois, então a conta não fechava. Além disso, Allan sabe muitos detalhes da vida dela, inclusive jeito de andar, de maquiar etc. Mas não sabia o nome do cachorro da família, já que ele não me avisou sobre isso no enterro do Jack, o que indica que ele era íntimo dela, não da família, como ele alegava. Também tem o fato do pessoal do salão de beleza ter reconhecido o Allan e tratado ele como íntimo da Alice. E se você somar isso ao hábito dele de ficar visitando a Alice quando ela estava sozinha em casa, né? Hehehe.
– Allan Tresekos, seu enxerido, desgraçado! É por isso que você me enchia o saco me mandando mensagem?
– Eu... Gostava do bolinho de chuva.
Isso virou uma novela mexicana, né? Depois dessa fala de Allan, um silêncio sepulcral tomou conta da sala. Allan e Ivan me olhavam com vontade de me matar. O Capitão Gregade, depois de perceber isso virou pra mim e disse:
– Jerry, pra sua segurança, é melhor você ir embora. Mangalvo, acompanhe ele pra evitar mais problemas.
Enfim, esse foi o meu caso mais estranho até agora. Ivan Harback está respondendo na justiça por falsidade ideológica e ocultação de cadáver, por ter escondido Alice Harback. Allan Tresekos está enfrentando um divórcio e ainda teve todo o caso dele com Alice vazado na internet pela ex-mulher dele, que tava com raiva, viu?
Quanto a mim, eu não ganhei todo o dinheiro que esperava, afinal eu expus o meu cliente, né? Coisas que acontecem. Mas sigo fazendo o meu trabalho esperando que esse caso me dê mais visibilidade pra eu poder dar a entrevista na frente da Padaria Nova Caledônia.
Só sei de uma coisa: se eu ainda tivesse na Polícia, esse caso nunca teria chegado até mim.