A noite do corujões
 
Outro pesqueiro muito afamado do Rio Jaguari
era o
Poço Batingão. Local de difícil acesso, mas que oferecia um ótimo local para acampamento. Eis que, a alguns metros da barranca do rio havia um local de mata antiga, intocada, ao redor de um terreiro, limpo por baixo e recoberto pela ramaria por cima, que dava a impressão de um amplo salão ao abrigo do sereno à noite. Porém a grande dificuldade era o acesso. Sem estrada para fordecos, a trilha só permitia a passagem, até certo ponto,  a pequenas carroças. O resto era feito a pé ou a cavalo. Dessa forma o transporte de pessoas, apetrechos de pesca e o municio de cozinha era feito por estes prosaicos meios de transporte. Pois para se chegar ao local de acampamento, já na barranca do rio, havia uma longa ribanceira íngreme. Mas, para aquela parceria de pesca amadora, formada entre amigos, estas dificuldades eram de somenos importância. Pois o pesqueiro era bom e o local para acampar era melhor ainda. E a abundância de peixes naquele trecho se explicava exatamente por causa destas dificuldades de acesso. Poucos pescadores se aventuravam a enfrentar o Batingão e com isso os cardumes se multiplicavam.
Lembro-me muito bem da primeira vez em que, novamente por interferência de meu padrinho Bosque, meu pai consentiu em levar-me junto a uma pescaria no Poço do Batingão. Pois se fosse por meu pai, guri não tinha nada a fazer em pescaria. Principalmente por ser um local de difícil acesso, levar um guri de dez anos era uma preocupação a mais, além das que já havia com os afazeres da pesca.
- É muito “cagão” ainda. Pode ficar com medo de ficar no acampamento sozinho à noite enquanto vamos ao rio. Pode até chorar. E daí? – argumentava meu pai na tentativa de demover meu padrinho Bosque. 
– Chorar, nada. Ele já está taludão – contrapunha meu padrinho – e coragem ele tem de sobra. Assim que se aprende a ser homem e criar coragem.
E dirigindo-se a mim, que, ansioso por aventura, observava de um lado, torcendo pelo desenlace favorável, piscou um olho e concluiu:
– Não é mesmo, Guri?
– Claro, padrinho. Pode deixar – respondi estufando o peito, afoito. 
Por mim, tudo bem. O que me interessava era a aventura. Pousar no mato, ouvir o canto da passarada de madrugada e os guinchos dos quatis, que, atrevidos, vinham bulir nas tralhas de cozinha penduradas em galhos, a procura de alimento, para aquele guri imberbe e inexperiente era uma grande aventura. Maravilhoso também era o local onde os homens armaram a barraca. As árvores formavam uma abóbada verde de tal forma que se alguém quisesse dormir fora, estaria bem protegido do sereno.
Antes do sol se pôr, os homens já haviam tomado o caminho dos pesqueiros, em duas canoas que alugaram de moradores vizinhos, onde levaram as redes feiticeiras e espinhéis, e eu, a fim de mostrar serviço, já havia catado lenha. Acender o fogo e limpar a folhagem seca ao redor, a fim de evitar um incêndio na mata, com isso me distraía. Até aquele momento, cheio de coragem.
De repente, quando já se fazia noite fechada, a passarada silenciara há muito, as pererecas na mata começavam raspar suas cuias e cantar suas lengalengas amorosas e o sapo-boi, lúgubre, a retumbar seu tambor à beira dágua, foi só ai que eu me dei conta que estava sozinho no acampamento. Nem um cachorro amigo para me fazer companhia. Mas tudo bem. A coragem, enquanto durasse, era minha fiel companheira. Acheguei-me à fogueira, joguei mais lenha ao fogo, sentei num banquinho tripé, assistindo as labaredas lamber a escuridão e a clarear o ambiente. Então, a partir daí comecei a notar a presença dos morcegos. Estes, às dúzias, espiralavam no ar em vôos rasantes. Quase roçando minha cabeça. Ui! Nunca tive medo de morcegos. Pois os que eu conhecia – e até já havia pego alguns com a mão - eram os morcegos da cidade, que vinham à noite nos postes de luz para comer cascudinhos. Uma dúvida me surgiu neste momento: E se estes aqui do mato fossem os tais vampiros e me atacassem? Ouvi dizer que eles gostam de chupar sangue. Bom, dizem que somente os morcegos vampiros fazem isso. “Espero que estes daqui não sejam vampiros.” – rezei. “Bom, os homens devem estar retornando. Daqui a pouco ouvirei as batidas dos remos contra as beiradas das canoas.” – calculei. Aí tudo bem. A coragem voltou. Porém não de forma completa.
Na vã tentativa de espantar os “vampiros” eu metia mais lenha ao fogo e apurava o ouvido no rumo do rio esperando ouvir algum ruído ou conversa. As labaredas consumiam as lenhas, que estralavam espalhando fagulhas. E dos homens, nem sinal. De repente outro susto. Um mão-pelada apareceu, atraído certamente pelas novidades  no ambiente. Parou e ficou a me olhar, com dois olhinhos que brilhavam feito brasa à contra-luz.  A fim de espantá-la joguei  um pedaço de lenha. Quem dera? O bicho alçou a cola  feito uma bandeira e  mostrou-me os dentes, num  meio sorriso nada amistoso. Ai não tive como evitar um friozinho na espinha e um arrepio no couro cabeludo. A coragem estava se complicando. Então  joguei um tição em brasa. Só assim o mão-pelada, dando uns guinchos de protesto, sumiu na escuridão  no rumo do rio. E para complicar ainda mais, a lenha disponível estava acabando e o fogo começava a baixar. Também, gastando lenha daquele jeito? E quem é que diz que eu teria coragem suficiente que ir catar mais lenha?
Na mata as pererecas continuavam a coaxar estrídulas, os grilos assanhados, a cricrilar e  o urutau, a gemer, lamentoso, chamando pela companheira.  Nisso um bufo, um pio, e um bater de asas bem acima de onde eu me encontrava. Gelei. Meu coração disparou. Eram dois corujões-de-orelha que estalavam os bicos, engalfinhados. Não tive mais dúvidas. A coragem definitivamente havia me abandonado.  O recurso foi correr à barraca e baixar a lona da porta e deitar-me nos pelegos e puxar as cobertas, tapando-me até a cabeça. E só pensava no retorno dos homens, e rezava: “Avemaria. Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador. Daqui a pouco eles chegam. Daqui a pouco ouvirei suas vozes.”Mas qual o que. Os corujões continuavam piando sobre a barraca. E do escuro da mata, ao longe, veio  um berro estranho e desusado. O que será? Será o tal de Boitatá? Mas boitatá não berra, dizem. Então é um guará! Meu Deus! Se for estou perdido. E se ele entrar aqui? Então me apertou uma vontade danada de urinar. Sair, nem pensar. Fazer nas roupas, ou nos pelegos, também me pareceu ser vergonhoso demais. Pois os homens, principalmente meu padrinho Bosque, descobririam que não tive coragem para ficar sozinho no acampamento. E diriam "Se mijou de medo" e outra vez certamente não me convidariam. Então refleti que o melhor seria improvisar um mitório dentro da barraca. Tateando, acheguei-me à beirada a porta de lona e ali me aliviei.

Nem bem terminara aquela função fisiológica, ouvi o que me pareceu outro guincho mais estranho que o primeiro. Pareceu-me um grito de homem. Ou seria uma vaca mugindo? Ou seria o guará se aproximando? Tudo isso se passou por minha mente de guri,  imberbe e medroso. Naquela altura eu só pensava numa coisa: tomara que não me de vontade de fazer cocô. Pois sentia  um barulho estranho na barriga e  continuava a tremer em baixo das cobertas, mas não era de frio, não. Era pânico mesmo.
O fogo já apagara e só restavam as brasas. O lampião apenas bruxuleava consumindo o pavio. Lembrei-me da lua. Que bom se fosse noite de lua cheia. A escuridão não seria tão aterradora. Porém sempre ouvi os pescadores dizerem que em noite de luar, o peixe não cai em rede feiticeira. Por isso desisti de esperar pelo nascimento da lua. Estávamos na  Lua Nova. Novamente aquele grito se repetiu. Desta vez me parecendo que vinha do alto da ribanceira. É gente chegando. “A estas horas?” pensei. E ser for bandido? Eu estava em meio a estas dúvidas terríveis quando percebi claramente que era alguém que gritava:
Ôôôôôh! Vitóóóório!
Prestei toda a atenção que me restava. "É alguém conhecido se aproximando." - pensei. Ah que alívio! Porém, mesmo que  quisesse,  eunão encontraria coragem para sair a responder. Permaneci à escuta. E aquele grito foi se aproximando cada vez mais, cada vez mais, até que uma voz conhecida gritou, já bem pertinho:
– Que diacho de acampamento é este, será que estão todos mortos, que ninguém responde?!
Reconheci. E era seu Clementino, parceiro da turma, que, por ser funcionário dos Correios não pudera vir antes com os companheiros. E estava fazendo agora, chegando a cavalo.
É claro que nesta altura eu já havia renascido. Era como se houvesse despertado de um pesadelo. Respirei fundo, duas vezes. E saí da barraca.
– E daí, seu Clementino? – cumprimentei,  tentando mostrar tranquilidade.
– Ah... É o guri do Vitório? Estás sozinho no acampamento? Cadê o resto da turma?
– Eles foram botar as redes. Saíram ainda com solzinho e até agora não voltaram.
– É? E ficaste sozinho no acampamento até estas horas?
– Claro, seu Clementino. O que é que tem? – falei, estufando o peito, mais de ar do que de coragem.  Embora esta coragem eu não soubesse dizer de onde teria surgido.
– Muito bem, guri. É assim que se fala.
Nestas alturas, Clementino, que já havia reavivado a mecha do lampião e ainda permanecia o lume na mão, ergueu-o à altura de meu rosto e... riu-se.
– Que é que tu tens, guri? Estás pálido. Viste algum fantasma?
– Pálido, eu? Só que seja de fome. É que eu ainda não comi nada. 
Felizmente, para mim, este diálogo não teve prosseguimento, pois nossas atenções foram desviadas para um ruído conhecido – e que há muitas horas eu esperava - as batidas dos remos contra os costados das canoas e a conversa animada dos pescadores retornando ao acampamento. 
 Nem bem eles haviam chegado, encorajado com a presença da turma, passei a mão no lampião e saí rumo à escuridão do mato.
– Onde é que tu vais agora, guri? – perguntou meu padrinho Bosque recém chegado, demonstrando certa surpresa.
– Vou buscar lenha , padrinho. O senhor não viu que o fogo já apagou?
Antes de me afastar, ainda pude ouvir meu padrinho Bosque falar ao meu pai:
– Parabéns, compadre Vitório. Mas que guri corajoso esse teu. Não te disse que é assim que ele aprende ser homem?
O que  meu pai respondeu não pude ouvir, pois já me havia afastado o suficiente. 
 Porém esta foi, enfim, uma grande experiência e que ficou gravada em minha memória como: “A noite dos Corujões.”
– Ufa! Que alívio.
 

Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 30/12/2007
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T797509