Histórias de pescador I
O casal de muçuns
Esta história não me foi contada, pois dela participei como expectador quando eu estava lá pelos meus gloriosos doze, ou treze anos, se bem me lembro. Meu pai fazia parte de uma parceria de pesca amadora, formada por um grupo de amigos na cidade de Jaguari. Nos verões, em fins de semana, era praxe a turma organizar excursões a determinados “pesqueiros” – assim chamado certos pontos do rio, bons de peixe e onde havia bom local para acampar. Então o grupo lotava dois ou três fordecos e se deslocava até esses locais, armava acampamento à beira do rio para passar dois ou três dias se divertindo à beira dágua. Geralmente a pescaria era apenas um pretexto, pois peixe era o que menos interessava. A finalidade principal era descontrair e esquecer um pouco as tensões provenientes de suas atividades na cidade. O grupo era constituído de pequenos comerciantes, gerentes de bancos, compadres entre si, primos e outros parceiros afins. Claro está que nesses acampamentos sempre havia um bom churrasco, regado ao saudável vinho da terra e a indefectível cachaça produzida nos alambiques da região. Eis que, como diziam os pescadores, cachaça com mel e suco limão, era um santo-remédio para “quebrar” o gelo do corpo devido aos longos período dentro dágua.
Como eu era afilhado de crisma de um dos componentes da parceria, era sempre figurante convidado. Desde que tivesse obtido bons resultados nos estudos. Meu pai não era lá muito chegado em levar guri em pescarias. Porém eu tinha um aliado:
– Vamos levar o guri junto, compadre. Assim ele já vai aprendendo a ficar mais homem. – sugeria meu padrinho Edgar Bosque. Convite que me enchia de orgulho e coragem, pois, ficar homem e demonstrar coragem, qual é o garotão, naquela idade, que não anseia e deseja.
Um destes pesqueiros preferidos, por ser relativamente próximo à cidade e muito piscoso, ficava no Passo do Barroso. Naquele tempo havia muito peixe naquele trecho do rio. Peixes de todos os matizes e tamanhos: dourados, piavas, grumatãs, cascudos e algum que outro muçum. Bicho que tinha má fama, pois quando pego num espinhel fazia uma bagunça, pois mesmo fisgado não morria e ficava durante toda a noite se enroscando, se retorcendo e enovelando-se até deixar o espinhel imprestável. E, além do mais, por não ser comestível para a maioria da turma, sempre que pegos eram simplesmente mortos e os restos jogados de volta ao rio. Por isso, os pescadores classificavam-no como uma praga do Passo do Barroso.
Outra “praga” – segundo os pescadores - eram os penetras. Uma dupla de moradores próximos ao local, Naná e Pintado – pessoas humildes – que se achegavam ao acampamento para filar um talho de churrasco, uma cachacinha amiga e até dormir, depois de bêbados, nos pelegos de algum pescador. E por fim levar as sobras aos seus ranchos. Pois outra coisa eles não faziam, a não ser contar alguma bravata sobre seus conhecimentos sobre o rio, sobre a maior enchente já havida ou sobre o tamanho dos peixes que eles já haviam pescado naquele local em eras passadas, ou ainda, sobre o maior de todos que, de tão grande, mas tão grande, eles nunca conseguiram tirar para fora dágua. Compadres entre si e companheiros nas mentiras, Naná e Pintado nem bem ouviam o ronco dos fordecos, corriam ao acampamento e se apresentavam como se fossem os principais convivas da festa. E por ali iam ficando, bebendo e comendo junto. E o pior, enchendo a paciência de todo mundo no acampamento. Entretanto havia ocasiões em que estes penetras, que eram useiros e vezeiros em se aproveitar da bondade da turma, após tomarem alguns tragos se tornavam chatos e incomodativos.
Pois bem. Nesta ocasião, cuja estória eu conto agora, ocasião em que Naná e Pintado já haviam enchido a cara e as medidas, além da paciência da turma, meu padrinho Bosque teve uma idéia original:
- Vamos fazer uma brincadeira com eles – disse ao chamar Celeste e Dick a um lado e recomendar que à noite, se pegassem algum muçum, não os jogassem de volta ao rio, mas que os trouxessem vivos ao acampamento. Uma vez combinado, enquanto Dick e Celeste retornavam ao rio para revisar os espinheis, Bosque deixou a propósito um litro de cachaça bem à vontade da dupla de compadres. Ah! Mas para quê? Enquanto iam contando suas mentiras de sempre, foram entrando, trago a trago no litro , até que, vencidos pela braanquinha os dois dormiam um ao lado do outro, feito dois capinchos gordos à beira dágua.
Dali a pouco, lembro-me bem da cena. Dick chega do rio trazendo dois alentados muçuns, de mais ou menos três palmos cada um, dentro de um saco de estopa. Bicho nojento é o muçum. Gosmento, parece cobra e não morre fora dágua. É, afinal, um peixe mais se parece com cobra.
Acorrem então Celeste e Bosque, pegam os muçuns pela cabeça, com jeito – pois o bicho tem uma mordida muito dolorida – e os enfiam pelos punhos das bombachas de cada um dos penetras, com todo o cuidado para não despertá-los, e as abotoam novamente. A seguir afastam-se para esperar o resultado. A partir daí os bichos, soltos nas bombachas folgadas, se retorciam lá dentro procurando saída. Subiam até lá em cima, davam voltas, tornavam a descer. Estavam em grande desassossego tentando sair. E, enquanto a dupla dormia ainda dopada pelo álcool; a turma ficava à distância observando, esperando a dupla acordar e já antegozando com o possível resultado.
Uns quinze minutos se passaram antes que o incômodo que os bichos faziam ao tentar sair fosse maior do que a soneira que a cachaça provocara nos dois, até que, de repente Naná mexe-se nos pelegos, arregala os olhos, e fica estático como se ferido de raio. Depois leva a mão abaixo da cintura como quem tateia algo entre as pernas e grita:
– Compadre Pintado! Uma cobra! Me acuda, gente! Uma cobra viva na minha bombacha! Ai! Ai! Compadre Pintado!Acorde homem!
Então, o outro, que se acordara com os gritos do companheiro, esticou a perna no ar, balançou-a e se pôs também a gritar:
– E é de casal, compadre! É de casal. Pelo amor-de-deus, gente! Tem cobra viva aqui, acudam. Ai meu Deus! Ai meu Deus!
A cena que se seguiu foi indescritível. Enquanto a parceria ria-se às gargalhadas – inclusive eu que, de tanto rir, tive um acesso de tosse – os dois compadres, coitados, bêbados ainda, saíram às gatinhas, pois não podiam parar de pé e tanto quanto puderam foram deixando as roupas e os muçuns para trás e já praticamente nús, sumiram na escuridão da noite.
Entretanto esta brincadeira, se por um lado rendeu uma cena muito hilária, por outro não trouxe resultado prático, pois na pescaria seguinte lá estava a mesma dupla, Naná e Pintado, filando churrasco novamente. Mas desta vez eles foram se achegando, desconfiados, muito sérios, olhando para um e outro, até que Pintado resolveu perguntar:
– Seu Vitório, o senhor, que é homem sério, pode me dizer quem foi que fez aquela judiaria com a gente?
– Acho que foi o Bosque – disse meu pai iniciando um jogo-de-empurra combinado.
– Eu não. Quem teve a idéia foi Celeste. Não foste tu, Celeste?
– Eu nunca – saltou fora o acusado. Pergunta ao Dick que ele sabe bem quem foi. E a coisa virou um tal jogo-de-empurra, e de tal sorte que a dupla resolveu parar de perguntar, pois viram que nunca conseguiriam saber quem havia sido o autor ou autores da brincadeira. Foi Bosque, foi Dick, foi Celeste, foi Vitorio. Porém isto concorreu para a dupla ficar mais confiada e prevalecida. E a partir daí, mais espertos e desconfiados, comiam mais churrasco e bebiam menos cachaça. Mas nunca deixaram de comparecer, mesmo sem convite, sempre que a turma se reunia no pesqueiro do Passo do Barroso.