Jerry Bocchio – Detetive Particular – Capítulo II: O Salão de Beleza

Por causa de um erro em minhas suposições, eu havia me exposto a Alice Harback. Agora ela sabia que era alvo de uma investigação. Eu sei que as mentes mais brilhantes também erram, por exemplo, o inventor do salpicão de frango quando decidiu colocar maçãs na receita. Só que ao invés de enfiar o erro goela abaixo das pessoas, como fez o inventor do salpicão de frango, eu precisava de uma nova estratégia para corrigir o erro.

Porém, antes de traçar qualquer estratégia, eu precisava enfrentar um furioso Allan Tresekos, que estava em meu escritório questionando meus métodos:

– Detetive, como que você não sabia que Jack era o cachorro?

– Ah, vou te dizer uma coisa também, que mania idiota é essa de as pessoas darem nome de gente pra bicho? Nome de cachorro tem que ser Rex, Totó, Fido etc. Não Jack! Daqui a pouco vão começar a dar nome de bicho pra gente. O cara vai no cartório e registra o nome do filho como Flufy da Silva. Ia ser uma bagunça.

– Custava você fazer o seu trabalho de detetive e investigar? Meia hora de investigação e você descobriria que ele era um cachorro. Além disso, se você olhasse na internet, veria que aquilo era um cemitério de animais.

– Não tente ensinar o padre a rezar a missa! Vê se eu fico dando pitaco no seu trabalho? Eu não vou numa construção sua pra falar "você devia fazer melhor seu trabalho de engenheiro tipo... Tipo... Fazer o reboque da parede com gesso".

– O senhor quis dizer "reboco da parede", detetive?

– Ué, tem diferença, é?

– Ai, meu Deus!

– Sabe de uma coisa, senhor Allan? O senhor parece muito com o meu capitão quando eu era da Polícia. Ele também tinha essa mania de ficar com a mão no rosto falando "ai, meu Deus" pra todo lado. Vocês devem ser muito religiosos.

– O senhor era da Polícia, detetive?

– Sim, mas eu saí de lá e achei melhor ser detetive particular. Essas repartições públicas engessam demais pessoas de espírito livre como eu. Eles nunca concordavam com meus métodos.

– Faço uma ideia do porquê.

Esse último comentário de Allan me deixou ressabiado. Parece que ele queria dizer algo com aquela fala. Fiquei encarando por alguns instantes em silêncio pensando em uma resposta boa pra ele, mas relevei. Quando eu entro em uma investigação, vou até o fim. Além disso, eu poderia ganhar um bom dinheiro no final.

– Muito bem, senhor Allan, vamos voltar ao caso. O senhor desconfia que Alice Harback é, na verdade, um homem disfarçado, certo? Bom, pra um homem andar como uma mulher por um dia inteiro sem ser notado, ele precisaria de uma maquiagem ou um profissional de maquiagem de primeira linha. Já que o senhor parece ter tanta intimidade com a família, saberia dizer se a Alice conta com algum profissional assim?

A feição de Allan mudou, parecia que ele tinha gostado do meu raciocínio. Ele se sentou na cadeira e começou a puxar algo da memória.

– Bom, Alice Harback sempre foi uma mulher muito vaidosa. E ela tem um salão de beleza de confiança que ela sempre vai. É o Hamilton's Fashion.

– Poxa vida, senhor Allan! O senhor sabe mesmo bastante detalhes da vida da Alice, hein?

– O que você quer dizer com isso, detetive?

– Não, Nada! Só que... Vamos deixar as coisas claras aqui. Todo homem já se apaixonou por uma mulher mais velha, né não?

– Como é que é?

– Ah, qual é? Tem problema não. Eu mesmo, quando estava na Academia, tive um relacionamento com uma das copeiras. Ah, ela fazia uma broa que...

– Senhor detetive! – Gritou Allan, esmurrando a mesa e me assustando.

– Tá bom! Tá bom! Já não está mais aqui quem falou! Eu vou pra esse salão de beleza pra ver se tem algo que me dê uma pista.

– Acho melhor eu ir junto pra evitar mais problemas.

Allan me levou até o local. Durante a viagem, ele me encarava com um olhar sério. Minha intuição me dizia que foi por causa da insinuação de que talvez ele tivesse uma queda pela senhora Alice Harback. Mas, convenhamos: esse cara sabe demais da vida dela. Até o salão de beleza ele sabia. Ah, só pra constar: não vamos mais tocar nesse assunto do meu relacionamento com a copeira, tudo bem? É que não acabou muito bem pro meu lado.

Chegamos ao salão de beleza. Era um salão muito grande e parecia ser frequentado por mulheres da alta sociedade. A recepcionista veio falar conosco. E pra atrapalhar, ela reconheceu o Allan.

– Allan Tresekos! Que bom ver o senhor aqui de novo! Faz muito tempo que o senhor não vem. Veio trazer alguém da sua família dessa vez?

Se todo mundo ficar reconhecendo o Allan assim, meus disfarces vão para o brejo! Afinal, Alice Harback já sabia que era alvo de investigação. Aí alguém fala pra ela que o Allan apareceu lá e pronto! Então, dessa vez, eu resolvi tomar as rédeas da conversa:

– Não, ele veio me trazer a este local. Meu nome é José Caravejo, sou diretor de teatro.

– Muito prazer, senhor Caravejo! Quais peças o senhor dirigiu?

– Como? A senhora não sabe? Não é possível! Eu exijo falar com o gerente! Como que um salão desses não respeita a arte? A arte! – Eu tinha um vizinho que era desse meio e falava todo afetado, foi daí que eu peguei a referência pra esse disfarce. Inclusive a pose com braço esquerdo inclinado pra cima, como se eu estivesse pegando uma fruta da árvore, toda vez que eu falava "a arte" – Me diga seu nome, moça! E chame o gerente agora!

– Não, não. Tudo bem, acalme-se! Eu prometo que vou me informar. Em que posso ser útil?

– Pois bem, na minha próxima peça, um dos atores fará um papel de um militar disfarçado de mulher numa família e...

– Hehehe, Você já vai contar o final da peça, diretor? – Disse Allan, me interrompendo e me dando um beliscão no braço ainda!

– Pare de interromper a arte, Allan! A arte! Só porque o senhor patrocina a minha peça, o senhor acha que está acima da arte? A arte! Você é o dinheiro e eu sou a arte! A arte! A arte não se interrompe! A arte! Olha só, agora eu perdi a minha linha de raciocínio.

– O senhor não vai fazer a pose, senhor Caravejo? – Perguntou a recepcionista.

– Não, só quando eu falo a palavra "arte" na frase. A arte!

– Nossa! Vocês, do meio artístico são... Bem... Particulares.

– A senhora está caçoando da arte, moça? A arte!

– Não, não! Olha, pelo que eu entendi, o senhor precisa de um maquiador para fazer um ator homem se passar por mulher na sua peça, certo?

– Você é esperta, moça! Os olhos da arte me trouxeram para o lugar certo. A arte!

– Ai, meu Deus do céu! – Esse Allan não para de fazer oração!

– OK, vou chamar o nosso principal maquiador aqui. Ele é o que dá o nome ao salão. Aguardem nessa sala de espera que ele já vem.

A recepcionista nos deixou gentilmente nas cadeiras da sala de espera e saiu em direção à porta de uma sala que ficava no final do salão. Ela atravessou todo o salão, entrou pela porta e fechou rapidamente. O salão estava com todas as cadeiras ocupadas, cada uma com uma mulher sentada enquanto o profissional fazia seus serviços nos cabelos, ou nas unhas, ou na maquiagem de cada uma. Um cheiro de descolorante era forte no ar e o barulho dos secadores de cabelo juntos compunham o ambiente.

Logo veio até nós o dono do local. Um rapaz sorridente e muito simpático. E, por incrível que pareça, ele também reconheceu o Allan:

– Allan Tresekos! Há quanto tempo! Não te vejo desde quando a Dona Alice foi internada.

Opa, opa, opa! "Dona Alice" seria a Alice Harback? Allan nunca me disse que ela foi internada. Além disso, parece que ele ia lá junto com ela. Então eu precisei intervir:

– Olá! O senhor deve ser o Hamilton que dá o nome ao salão. Muito prazer, eu sou José Caravejo.

– O prazer é meu de receber um diretor de teatro tão renomado no meu salão. A propósito, não precisa pronunciar meu nome com sotaque estrangeiro, meu nome é aportuguesado mesmo. Mas só falo isso para os clientes mais íntimos, hein?

– Aaaah! Tudo bem. Só uma pergunta: quem seria essa "Dona Alice" à qual você se referiu?

– Alice Harback, acho que o senhor deve conhecer, já que anda com o Allan.

Opa, opa, opa e mais opa! Quer dizer que quem anda com o Allan conhece a Alice automaticamente? Eu precisava questionar o Allan:

– Allan Tresekos, quando combinamos o seu patrocínio, o senhor ficou de me passar as informações minuciosamente. O senhor quer atrapalhar a arte? A arte!

– Eeeh... Eu não sabia que isso era importante pra história da peça.

– Como não? Isso faz parte da história central da peça!

– Desculpem-me, mas... A peça é sobre a Dona Alice? Ela nunca me disse que fariam isso.

– Não posso contar a história agora, Hamilton. A arte é um castelo que precisa ser construído aos poucos. A arte! – Muito boa essa analogia, hein?

– OK... Então, a Manu me disse que vocês precisam de um maquiador para fazer um ator se passar por mulher no palco. Bom, eu posso mostrar pra vocês o meu trabalho? Eu faço uma maquiagem mais simples pra vocês verem, aí vocês decidem se me contratam ou não. Onde está o ator?

Allan queria acabar logo com a situação, então tentou entrar na conversa. Mas eu precisava de mais informações. E aquele maquiador parecia saber bastante.

– O ator não pôde vir. Podemos marcar pra outro dia?

– Não, tudo bem, pode fazer no Allan mesmo!

– O quê? Cê tá doido?

– Allan, faça isso pela arte! A arte!

– Ah, perfeito, senhores! Allan, acompanhe a Manu até a cadeira enquanto o diretor me diz como ele quer que fique.

– Ei, eu não concordei com isso!

Pois esse tal de Hamilton faz mesmo uma maquiagem perfeita! O Allan ficou uma modelo fotográfica! Além disso, ele também sabia muito sobre a vida de Alice Harback. Enquanto Hamilton ia trabalhando no Allan, ele ia me dando mais alguns detalhes.

Parece que Alice Harback contraiu um tumor há dois anos atrás e foi dada como sem esperanças. Mas, meio que milagrosamente, ela voltou e o tumor regrediu. Esses médicos de ricos são muito competentes mesmo!

Além disso, parece que enquanto o General Ivan Harback lutava na guerra, Alice Harback frequentava o salão de beleza na companhia de Allan. E isso só acabou quando ela ficou doente.

Mas esse Allan me deve muitas explicações! E não vai ser o rostinho bonito dele que vai me fazer titubear não, viu?

Continua...