Nota de rodapé
Aprecio demais literatura. Ela me auxilia bastante como gerente de RH de uma conceituada agência de empregos. Sou muito bem remunerado e nossos clientes são várias empresas nacionais e algumas multinacionais. Através da ficção é possível conhecer diversos tipos de personalidade assim como personagens singulares que um dia podem muito bem estar sentados em nossa frente, e dos quais já saberíamos muita coisa de antemão. Isso facilita demais meu trabalho e dos colegas da agência.
Tenho como norma reprovar todo candidato que não gosta de literatura ou que, mesmo lendo, não aprecia bons autores, apenas aqueles que vendem mais, que estejam na moda. E até aprovo alguns candidatos que mesmo não preenchendo todos os requisitos exigidos pelas empresas se dão ao prazer de ler bons livros, com os quais podemos estabelecer certa empatia. Agindo assim, segundo minhas preferências literárias, sei que cometo injustiças. Porém, a própria vida é injusta, não?
Veja meu caso: não é de livros que me ocupo diretamente, tampouco de escritores. Então não estou plenamente satisfeito com o que faço: analisar currículos, entrevistar e selecionar candidatos, decidir sobre questões espinhosas, participar de reuniões que por vezes podem se tornar aborrecidas etc. Ainda que alguns entrevistados, e mesmo os colegas de trabalho sejam pessoas interessantes, eu estaria muito mais satisfeito se estivesse escrevendo livros, publicando-os, comentando-os, isso sim. Ou então, simplesmente lendo-os. Muitos, centenas deles.
Somente à noite ou nos momentos de folga e nos finais de semana é que posso encher minha banheira de livros e então mergulhar com imensa paixão no oceano de histórias que ela comporta e por vezes extravasa... Mas se eu tivesse uma piscina, feito o tio Patinhas das histórias do Walt Disney, eu seria mais feliz porque a quantidade de livros que ela poderia comportar seria imensa. Imenso seria meu prazer, então. Se o mundo fosse justo comigo nesse momento eu estaria numa piscina lotada de livros dando minhas braçadas, melhor, livradas. Mas não.
De volta à realidade, semana passada tivemos uma discussão muito proveitosa aqui na agência antes de votarmos nossas decisões acerca de um assunto profissional. Meus colegas defendiam a ideia de que "a função hosseiniana de caçador de pipas, por ser altamente perigosa e insalubre”, deveria ser melhor remunerada do que a de apanhador no campo de centeio, "atividade salingerista de grande responsabilidade, porém de menor risco para o executante”. Pois é: discutíamos uma questão salarial que poderia impactar a vida de milhares de trabalhadores mundo afora.
Ocorre que O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, é um dos meus livros favoritos desde sempre. O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini, eu não havia lido ainda (e nem sei se vou ler um dia), apenas visto o filme nele baseado, que não achei tão bom assim. Embora, via de regra, um filme seja sempre inferior ao livro que lhe serviu de base para a adaptação cinematográfica. Mas isso não me impediu de votar, claro, porque, como afirmei antes, injustiças ocorrem e eu não me importava muito se estivesse cometendo mais uma. Nesse caso, penso que não...
Então votei segundo minhas simpatias literárias.
Votei, pois, contra o caçador do Hosseini.
Fiquei com o apanhador do Salinger.
E apanhei feio.
Por 4 votos a 1 venceu o caçador.
Foi o dia dele, não da caça.
Nem essa foi lá uma história muito cheia de graça.