DOIS NOÉIS

Sentimentos às vezes são ridículos, assim como são ridículas as cartas de amor.

Afeto, desejar o bem ao semelhante, ternura, carinho, são expressões de nossa humanidade, de algo divíno, que guardamos n'alma e que nos impulsiona para o desenvolvimento espiritual.

Amar o próximo, como a nós mesmo, é o que nos difere de outras espécies animais.

O homem primitivo, ao dividir o alimento com os inválidos e os idosos do grupo, incapazes de caçar e contribuir para o sustento da caverna, expressou, pela primeira vez, dedicação ao seu igual.

No Natal, recordamos o dia em que o Filho de Deus veio para nos salvar através do amor.

Assim, nesta época, tudo o que é expressão do amor não é exagero.

Nem ridículo.

Salvo algumas situações.

E nos metemos numa delas.

Fomos aos Correios postar alguns cartões.

Enquanto eu despacha as cartas, Eliezer ficou a remexer dentro de uma caixa que os funcionários colocaram na entrada.

Quando terminei, chamou-me e pude ver que eram cartas endereçadas ao Papai Noel.

Os Correios tiveram a idéia de compartilhar com o público os pedidos formulados ao bom velhinho.

Sonhos que estavam a espera de alguém para se realizarem.

Escritas por crianças, o conteúdo revela a ilusão de Natal.

E a preocupação de muitas delas com a própria realidade.

Fazem recordar um poema de Cassiano Ricardo:

" Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia

de chorar, me vinham de outros olhos.

Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro

era um rio.

Quando eu nasci, já as estrelas estavam em seus lugares

definitivamente.

Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influissem

desta ou daquela forma, em meu destino. "

("O acusado").

Apanhamos algumas.

Descartamos pedidos de celulares, de emprego, e aqueles que não podíamos realizar.

Assumimos cumprir quatro desejos.

Dois de brinquedos.

Uma menina que queria uma boneca "com cabelo de verdade", porque estava farta de brincar com boneca careca.

Um garoto que desejava um monstrengo exibido na televisão.

E dois outros.

Uma criança que queria um panetone.

E outra que gostaria de comer peru, bicho que ela não conhecia.

Para cada, acrescentamos uma cesta de alimentos.

Transformamos nosso carro em treno de renas e

Oh! Oh! Oh!

A menina da boneca cabeluda ficou feliz em receber o presente.

E ficamos felizes em presenteá-la.

Não encontramos o endereço do garoto do monstrengo.

Por certo, mudara-se para o planeta Zork.

Depois, numa casa com um veículo semelhante a um automóvel na garagem, batemos palmas.

Muitas palmas.

Dentro, uma dupla de cantores, em alto volume, gritava uma música sem poesia.

Chamamos "ô de casa!", várias vezes.

Eliezer sugeriu que jogássemos um tijolo na janela.

Por fim, veio nos atender uma mulher com um cigarro numa das mãos e um celular na outra.

Falava ao aparelho e não interrompeu o namoro.

Perguntamos se ali morava a criança que queria um panetone.

Com dificuldade respondeu que sim, mas que ela não estava em casa.

Entregamos nosso sonho.

Ela jogou a guimba e agarrou a boa ação.

Voltou para dentro e nos abandonou na calçada.

O outro endereço era perto.

Casa semelhante, com parabólica fincada no jardim.

Havia silêncio.

Batemos palmas.

Gritamos "ô de casa!".

E consideramos desnecessário lançar um tijolo na janela.

Os moradores estavam fora.

Eliezer sugeriu que depositássemos os mimos na varanda, junto à porta de entrada.

Argumentou que a família, ao retornar, ficaria feliz em encontrar nossos donativos.

A idéia tinha o benefício do anonimato e alimentaria a ilusão da criança de que Papai Noel visitara a casa na sua ausência.

Entre a calçada, onde estávamos, e o lugar aonde Eliezer depositou os presentes, havia uma distância de dois a três metros.

Eliezer corre bem, Graças a Deus.

Também, Graças a Ele, mantive atento o portão entreaberto.

Lasso, assobiando "Dingo Bel", Eliezer depositou os pacotes junto à porta.

Arranjou tempo para equilibrar o peru em cima da cesta.

Para dar brilho, como a cereja lustra um bolo.

Esfregou as mãos de satisfação pelo seu trabalho.

Era o sinal e a ocasião que o f.d.m. aguardava!

Junto à parede do fundo, primeiro ele mostrou o focinho.

Negro, lustroso.

Depois exibiu dentes afiados.

Rosnou.

Meus cabelos eriçaram.

Os de Eliezer saltaram da sua cabeça para o solo e correram para a rua antes que ele próprio começasse a se mover.

Como no desenho do Pica Pau.

O cão começou a avançar devagar.

Olhos assassinos.

Boca espumosa.

Depois saiu chispando, levantando terra com as patas.

Malandrão, fez toda esta cena para ofertar vantagem.

Não estava interessado em carne humana.

Eliezer passou por mim e bati o portão.

O cão chocou-se contra a grade.

Após o quê, perdeu completamente o interesse por nós.

Voltou-se abanando o rabo e abocanhou o peru.

Canalha!

_____ Veja como está gordo! Este cachorro come peru todos os dias!

Injuriado ordenou-me com o dedo:

_____ Vai lá buscar de volta o nosso peru!

_____ Nem morto!

Para nos restabelecer paramos num bar de nome "Último Gole".

E porque é Natal, pedimos vinho.

Fomos servidos com algo que tingiu os copos.

No bar vazio, apenas uma mulher nos olhava curiosa.

Derrotada, unhas e boca vermelha.

Eliezer relaxou, pavoneou-se, sorriu, assumiu ares de galã e colocou romantismo na voz:

_____ Bonequinha linda!

Ela acusou recebimento ao inesperado elogio.

O galanteio renovou a sua face.

O sonho devolveu a ela a beleza que há muito perdera.

_____ Obrigada!

Mãos nos lábios não conseguiram esconder falhas nos dentes.

Eliezer foi ao seu encontro e entregou o mostro de Zork e a cesta de alimentos.

Ela retribuiu com um abraço e desejo de Feliz Natal.

Repeti o gesto e brindamos com o vinho.

E fomos embora.

Logo, uma acidez repentina no estômago avisou que o nome do bar, "Último Gole", não era uma referência a sua localização geográfica.

Era um alerta para a má qualidade da bebida.

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Araçatuba-SP, 20/12/2007