O HOMEM QUE VIRA CACHORRO
Acho que foi ainda na década de 80, quando a política econômica do Brasil era um desastre incompreensível, para quase todos que não sentiram o peso do custo de viver nesta e nas décadas anteriores.
Mas talvez ajude a saber, que naqueles tempos resistiam determinados espécimes de artistas, que muito por força das circunstâncias, tinham que rigorosamente viver um momento de cada vez. Isso significa dizer em outras palavras, por exemplo, que não havia como vender o almoço para comprar o jantar, por não se saber quanto custaria à refeição seguinte.
Também nesta década, o contexto histórico-cultural desfavorecia em muito as formas e fazeres culturais brasileiros. Principalmente após o final da ditadura militar, houve intensa ascensão e supervalorização dos modelos culturais estrangeiros no Brasil, isso, de tal forma que as linguagens artísticas nativas, passaram comumente a serem tidas como sem valor, ou mesmo desprezadas, ante o poder das grandes mídias do rádio, da TV, do cinema e de toda gama de jornalismo falado e impresso, que se apressava em exaltar cotidianamente os valores estrangeiros, com destaque absoluto para a cultura estadunidense.
Mas fazer arte é sobretudo recriar, reinventar a realidade. Ou sendo mais exato: Fazer arte é moldar o cotidiano. E ser artista é esculpir na cara da cultura, uma expressão que pode durar por quanto durar sua força.
Desta vez lembro que era o Palhaço Pinóquio, criatura não menos festiva que seu criador, o Carlin, esse que se encontrava mais uma vez no mato sem cachorro, liso, desempregado, devendo nas bodegas e, pior… sem perspectiva de uma fonte de renda ressurgente, já que naquelas eras aniversários infantis eram raríssimos, por conta do pouco poder econômico das famílias em geral, e circos… bem, tirando a parte romântica, se hoje ainda é difícil sobreviver disso, não será fácil imaginar como era no passado.
Não se sabe ao certo até que ponto pode chegar o ser humano, quando a fome o domina, mas quem já conviveu lado a lado com esta afecção, sabe que a fome é como uma entidade agressiva, que pode ser contraída pelo ar que se respira, mas que também pode entrar por todos os poros do corpo, percorrer com rapidez o sistema circulatório sanguíneo, invadir o sistema digestivo e chegar até o estômago, lá, não encontrando nada, ela pode devastar toda aquela estrutura, fluindo novamente por veias e artérias até achar ao cérebro… e dali, como ratos num navio condenado, a praga escapa finalmente pelos olhos, boca e mãos, principalmente...
O que se soube foi o que se viu, e o que se viu foi o Palhaço Pinóquio, com suas vestes clássicas da época, montado em sua bagageira enferrujada, cuja garupa trazia uma velha “radiadora” alimentada por bateria de carro, presa na frente da condução. Ouvia-se entre ruídos e chiados uma voz irritantemente anasalada, que anunciava ufanista o que dizia ser um “grande espetáculo” que ocorreria logo mais.
- “É hoje! É hoje! É hoje! Não “perdam”! O magnífico espetáculo com o famoso Palhaço Pinóquio! Malabarismo! Equilibrismo! Homem Tocha! Números de magia e as mais belas dançarinas! É espetacular! Você não pode perder! E, no final do show... O inacreditável!!! Diretamente da capital, Fortaleza! É simplesmente “fantardigo”! Não tem defeito especial! É ele, “O HOMEM QUE VIRA CACHORRO’”! Não perdam! Se você não for, só você não vai”...
Principalmente lá no “Outro Lado do Rio” (era assim, sinistramente, que a comunidade era conhecida), todos já conheciam bem aquela cena, bem como os números do próprio show já bem manjados naquele lugar. Mas, desta vez, havia essa coisa nova de um tal… “homem que vira cachorro”. – O que será que o “Carlin” ta inventando dessa vez? O que será?- Nascia esta inquietude nas mentes dos moradores das imediações.
Pois não é que diabo do palhaço, passou o dia inteiro perturbando o juízo do povo? De manhã, durante o calor e sob o sol infernal da tarde, e mesmo minutos antes da apresentação noturna, o inconveniente barulho da radiadora assombrou os ouvidos dos moradores do bairro? Pois é! Em algumas ruas, o famigerado palhaço ousou passar insuportáveis DEZ VEZES, pasme!
Ao cair da noite, no Bairro Dom Expedito (nome oficial do lugar) e vizinhanças, praticamente se respirava e suspirava em função da apresentação do palhaço Pinóquio (Carlin). Sobretudo e principalmente, se vivia para especular acerca da tal apresentação final.
Às sete horas da noite, na sede da associação do bairro, o circo e o cerco já estavam armados, e os primeiros ingressos começaram a ser vendidos a preços popularescos, como de costume. E em menos de meia hora, todo o espaço estava lotado com uma plateia ansiosa e inquieta. A renda daria para pagar parte das dívidas, reabrir o crédito e segurar as pontas durante uns dois meses mais ou menos. Carlin ia se dar bem.
No meio da euforia, começa o espetáculo com o surgimento do mestre de cerimônias, que era o Carlin. Aliás, com exceção das dançarinas, vizinhas e parentes recrutadas de última hora... palhaço, malabarista, equilibrista, homem tocha, mágico, todos eram o mesmo, Carlin. E como sempre, no decorrer das apresentações, vez por outra um ou outro espectador intervinha.
– “Bóra Carlin! Dexa dessas besteira! Cumeça logo ai o home que vira cachorro! – Égua Carlin, denovo! Todo mundo já sabe dessas mágica réa, nããã... Cadê o Home que vira cachorro, macho véi”?
Mas a despeito dos lamentos do público, o artista seguiu com seus velhos números, até que em dado momento, veio novamente o mestre de cerimônias e sem nenhuma cerimônia, anunciou que o fim do espetáculo havia chegado. Neste instante a plateia toda levantou-se em polvorosa, a ira estava em seus olhos, enquanto eles cobravam com gritos de indignação: - “Que nada Carlin! Tu num se manca não? – É Carlin, tem vergonha nessa cara não macho? – E rumbora, que a gente só sai daqui quando ver exe homem que vira cachorro!
Após algum tempo de muito barulho, ressurge o apresentador, com ar apaziguador, e o Mestre de Cerimônias anunciou serenamente o último número. E, saindo de cena, voltou com um pequeno vira latas nas mãos, que tinha antes posto a postos, então, solenemente a criatura virou o animal de barriga para cima e depois ao contrário, repetiu o gesto mais uma vez e agradeceu altivo com um gesto, os aplausos que não vieram...
Agora no semblante dos espectadores via-se cólera profunda. De início a incredulidade em tamanha ousadia estagnou a todos. E enquanto o transe de perplexidade não passava, o Carlin foi saindo de fininho, mas logo alguns partiram para cima do palhaço, que já tinha um plano de fuga planejado entre cortinas, buracos de parede e quintais da vizinhança.
Ufa! Foi por pouco! Carlim escapou fedendo (como se diz no Ceará)!
Apesar do fato nunca ter sido esclarecido, comenta-se que meses depois, já estava novamente o Palhaço Pinóquio (Carlin) em sua bagageira loréu, anunciando mais um show imperdível. Desta vez a atração final seria “O fantardigo Homem que Vira Peixe”.