Rigor religioso

O cidadão entrou para uma ordem religiosa rigorosíssima. Trancafiado numa cela, tinha como única liberdade a ser exercida a cada cinco anos o direito de proferir duas palavras, quando visitado pelo reverendíssimo abade. O resto era só para as preces. Silenciosas também.

Passado o primeiro lustro da internação, numa batida à grade, os ferrolhos ruidosamente se abrem e o abade, cercado de seis truculentos frades-corretores, sorridente, dirige-se ao noviço:

- Fale, meu dileto discípulo, as duas palavras a que tens por direito divino proferir neste sacro recinto e sacro momento...

O noviço responde:

- Cela fria...

A porta se fecha. E mais cinco anos são passados, para a nova visita do abade:

- E então, filho dileto, exerce teu divino direito, concedido pela graça do Senhor...

- Comida horrorosa...

E a cena da visita volta a se repetir, vencido o terceiro lustro:

- Vamos, meu bom filho, é teu grande dia...

- Vou embora...!

Ao ouvir aquela tão surpreendente reação, o abade, colérico e descontrolado, vitupera:

- Também pudera, maldito incréu, o tempo todo reclamando de minha benevolência, só este fim mesmo se poderia esperar de um traste de tua laia...vai, vai para as profundas e probundas da perversão mundana...o fogo do inferno te espera...!

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 04/06/2023
Código do texto: T7805497
Classificação de conteúdo: seguro