O SEGUNDO FUNERAL DE VIEGAS
Se o leitor não se lembra, faço a citação da primeira morte de Viegas, personagem de Machado de Assis no romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas":
"Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dois, depois mais três, enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos."
Coitado!
Negociante por vício, Viegas morre regateando o preço de uma casa.
O bruxo de Cosme Velho, além de ser nosso melhor escritor, tinha humor refinado.
Eliezer, meu tio, (na verdade um agregado na família), com seu comportamento estabanado, fez-me lembrar dessa pérola da literatura.
Há algum tempo, morreu num sítio, na zona rural, um nosso conhecido.
Sujeito ermitão e um pouco problemático, foi assistido até o último momento por um filho e uma filha, que pediram nossa ajuda.
A morte é uma consequência natural da vida e devemos habituar-se a ela.
E reconhecer que mesmo rodeado pelos parentes e amigos, quem parte, sempre vai solitário.
Como no nascimento, a morte é um momento exclusivo da pessoa.
Nessa hora, os amigos servem para consolar os que ficam.
Foi assim.
Ele fechou os olhos e amparamos os vivos.
Depois levei os dois para a cidade, para providenciarem o caixão e tudo mais que é necessário para um funeral.
O problema foi que deixamos Eliezer sozinho com o morto.
Ele sempre faz lambança, mas não imaginamos o que ele faria com um cadáver.
A questão é que o falecido, em vida, não era muito chegado a higiene pessoal.
Digamos, educadamente, que ele estava "um pouco sujinho".
Quando voltei, acompanhado do agente funerário e trazendo roupas limpas para vestir o morto, o "de cujus " jazia no quintal, secando estendido sobre o estrado de uma velha cama, nu com uma toalha a lhe cobrir as partes intimas.
Durante a nossa ausência, Eliezer aproveitou para aplicar um banho demorado no coitado.
Com direito a escovão , bucha e todo material de limpeza que encontrou pela redondeza.
In extremis, fez uma faxina completa.
O corpo reluzia na luz da tarde, rosado como um presunto cozido exposto ao sol.
Claro, disto tudo ninguém ficou sabendo.
Restabelecemos o respeito, vestimos o morto e o levamos para o velório.
Mais tarde, os parentes, os amigos, os conhecidos, todos vieram nos cumprimentar pelos cuidados dispensados.
Apenas estranharam o cheiro de sabão em pó e amaciante de roupa que exalava do defunto.
...................Obrigado pela leitura - 20/05/2023
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