O pequeno artista
Ouvi a seguinte conversa no barbeiro, enquanto aguardava minha vez de cortar os cabelos. Dois senhores de idade provecta falavam sobre seus netos e bisnetos. Um deles - muito coruja acerca de seu único bisneto, que tinha o mesmo nome que ele, provavelmente uma homenagem dos parentes - dizia o seguinte:
- Mozart tinha 5 anos quando compôs sua primeira obra musical. Grande coisa! Paulinho, meu bisneto, tem apenas 3 anos e é escritor.
- Sério? Já publicou algum livro?
- Não, mas Paulinho é muito talentoso, acredito que terá futuro nas letras brasileiras.
- Sua família é muito grande: acha que ele puxou algum parente, se não escritor ao menos um grande leitor?
- Puxou a mim, acredito. Minha falecida mãe, que Deus a tenha, contava a todo mundo que fui um grande rabiscador de paredes quando pequeno. Depois, na escola primária eu gostava muito de fazer narrações e descrições à vista de uma gravura; lembra daqueles exercícios de língua portuguesa? Mas isso faz tempo, né?
- Uh, se faz tempo, mas me lembro, sim! E você não virou escritor, mas contador, não de histórias, já que teve um escritório contábil, certo?
- De fato, fui contabilista durante mais de quarenta anos.
- Mas e o Paulinho, ele usa computador para escrever?
- Não, não, ele usa lápis mesmo.
- Lápis e papel, você quer dizer, não?
- Só lápis mesmo. Sai rabiscando as paredes todas do apartamento dos pais, não deixa pedra sobre pedra, ou melhor, nenhuma parede sem rabiscos.
- Ah, é?! Então o Paulinho não é propriamente um escritor, mas um rabiscador como você foi, certo? E quem limpa depois?
- Pode ser, mas todo escritor começa assim mesmo, rabiscando alguma coisa. São os pais que limpam tudo: eles devem ser os maiores consumidores de esponja mágica do país, desconfio. Nenhuma empregada doméstica para lá mais de uma semana.
- Logicamente que não! Coloquem o menino numa creche então, pelo menos ele vai rabiscar as paredes dos outros.
- Mas ele já frequenta uma creche. Lá, não consegue rabiscar nada porque as paredes foram pintadas com tinta especial para não causar problemas de saúde às crianças. Ele só rabisca o apartamento quando volta para casa.
- Sim, mas aí já está quase na hora dele dormir, não?
- Dormir ele dorme na creche, o espertinho, depois de brincar bastante. Passa o dia todo lá e quando volta para casa fica rabiscando as paredes até por volta de meia-noite.
- Meu Deus! Então é melhor levar o garoto para um psicólogo examinar, não?
- Já foi e continua indo. Foi o próprio psicólogo que recomendou dar lápis e papel para o menino. Só que em vez do papel ele preferiu as paredes. E o psicólogo falou que não era para contrariar o pequeno escritor, entende?
- Se é assim... Bem, talvez ele não se torne um escritor no futuro, como você pensa, mas um grafiteiro, um pintor, com sorte, um Picasso nacional, quem sabe?
- Picasso acho que não: já vi o pincelzinho do Paulinho quando ele brincava na piscina lá de casa...
- Então me diga: ele puxou a você na pintura ou foi só na rabiscação?
Felizmente um dos barbeiros chamou o bisavô do pequeno escritor para o corte, então a pergunta do amigo ficou sem resposta. Ainda bem.