Intenção de viver
No Brasil ocorrem muitos acidentes de trânsito, não apenas nas rodovias, também nas cidades, muitos. Como já escrevi em outra ocasião, em vez de motoristas vigilantes temos uma legião de vacilantes ao volante, especialmente nos feriados. E quando algum motorista bêbado e dirigindo em alta velocidade atropela alguém ou colide com outro veículo, provocando a morte do condutor e ou dos passageiros, logo aparece um advogado alegando que seu cliente não tinha “intenção de matar”, que se houve crime ele foi culposo, não doloso.
Como conhecemos bem nosso país, as autoridades, os bêbados e apressados e seus advogados, sabemos que a impunidade é uma grande certeza. Quase sempre o infrator consegue se safar de cumprir pena ou, se passar algum tempo na cadeia, esse tempo será mínimo. Ou ainda, basta pagar uma multa ou cumprir medida substitutiva de prisão que tudo ficará bem para ele. De todo modo, é sempre bom lembrar que as pessoas que tiveram a vida ceifada por irresponsáveis ao volante também não tinham “intenção de morrer”. É por isso que o inferno está cheio de gente com boas intenções, como se diz popularmente.
Porque se há no Juízo Final algum tribunal para julgar os crimes de trânsito aqui da Terra, podemos ficar certos que lá também os advogados dos motoristas infratores tentarão obter o paraíso para seus clientes e mandar para o inferno os reclamantes. Daí que também se diz que a justiça é cega, surda e muda. Não é burra, muito pelo contrário, muitas vezes é safada e também cúmplice, faltou dizer isso. Até mesmo a divina justiça, que não protege nem mesmo os seus, digamos, membros. Vejamos o seguinte caso, envolvendo uma religiosa:
Dias atrás um motorista bêbado atropelou e matou uma freira que atravessava uma rua perto daqui, na nossa cidadezinha no extremo sul do mapa. Era quase noite, ela vestia seu hábito peculiar e atravessava corretamente a rua com o sinal fechado para os autos e na faixa de pedestres. O que o motorista safado e bêbado que causou o acidente alegou depois de conversar com seu advogado? O seguinte:
“Estava meio escuro, pensei que fosse um pinguim gigante que tivesse fugido da Antártica, ou da Brahma, sei lá, já que é tudo gelado igual, Polo Sul mesmo. Como se tratava de uma espécie animal exótica, certamente sua criação ou domesticação é proibida pelo Ibama, então não parei no sinal vermelho porque o bicho poderia fugir. Melhor atropelá-lo logo para que fosse capturado e não interferisse negativamente no nosso meio ambiente.” Acredite se quiser (porque isso é ficção, claro, mas algumas alegações de advogados a favor de seus clientes são tão ridículas que extrapolam a imaginação de qualquer um).
Continuando: o que o delegado disse para o suspeito depois de verificar o teste do bafômetro aplicado pelo policial que o deteve e que confirmou alto teor de álcool em seu organismo? Sim, suspeito, porque não se pode ofender os culpados, claro, chamando-os pelo que verdadeiramente são, criminosos. “Meu amigo, o senhor escreve ficção científica ou coisa parecida? Porque tem uma imaginação que vou te contar, hein? Acontece que o senhor entrou numa fria, sabia?” E o suspeito:
“É, agora estou sabendo, mas mesmo que o pinguim não tivesse intenção de morrer, eu também não tinha intenção de matar, apenas de aleijar. Só não sabia que esse animal sem-vergonha, querendo entrar ilegalmente em nosso país, se disfarçasse justamente de freira. Que pecado, que absurdo! Pode uma coisa dessas? Disfarçar assim é crime, não é, seu delegado?”
Depende...