Sartre, futebol e cachaça
Se nas últimas eleições José não cometeu a insensatez de eleger presidente da república o dito candidato da direita e menos ainda o dito candidato da esquerda, ambos nocivos para o país, cada qual a seu modo, ele pensa então que escolheu fazer a coisa certa. Que foi anular o voto, com isso demonstrando sua insatisfação com os rumos da política, e desse modo tomou uma decisão, digamos, sartreana. Não escolher nenhum dos dois candidatos no segundo turno não foi simplesmente anular seu voto, foi igualmente uma escolha.
Explicando melhor: uma das ideias centrais do filósofo Jean-Paul Sartre é a de que o homem está condenado à liberdade, isso significando que sendo livre ele tem de tomar decisões, fazer escolhas por si só, ainda que elas sejam afetadas por acontecimentos externos. A escolha é um dos temas centrais da filosofia sartreana. Sartre dizia que mesmo quando nada escolhemos estamos fazendo uma escolha: a de não escolher nada. O que não deixa de ser verdade, verdadeiramente filosofia.
Em O Muro, uma de suas histórias curtas mais conhecidas, podemos encontrar essa questão colocada através do drama que vive um prisioneiro espanhol. Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) a liberdade de alguns republicanos (opositores do general Francisco Franco) está cerceada pelas paredes de uma cela. A um deles, Pablo Ibbieta, é oferecida a possibilidade de liberdade desde que informe aos guardas franquistas (leia-se fascistas) o esconderijo de Ramón Gris, outro combatente que desejam capturar. Os demais prisioneiros seriam mortos contra um muro, um paredão de fuzilamento.
Pablo tem de escolher entre trair o companheiro, entregando a localização do esconderijo dele, ou morrer fuzilado, junto com os outros ocupantes da cela. É preciso ler o conto até o final (que não vou revelar) para saber como a história termina (mas posso dizer que é de um modo irônico). E já que falamos em escolhas, temos abaixo um teste de múltipla escolha, coisa que não era muito comum no tempo de Sartre, não nas escolas da França, mais nos Estados Unidos. Mas vamos lá:
Desiludido com seu pais, agora José está bebendo sua cachacinha no bar, a quinta já, ao mesmo tempo em que palavreia com um estranho, um desconhecido que puxou conversa sobre futebol. Apesar de meio estranho José acha que ele não se parece com um filósofo (quase todos os filósofos são meio estranhos mesmo) e tampouco com um alienígena. Lembra-se, porém, que alienígenas sabem se disfarçar muito bem de terráqueos porque querem dominar a Terra, apesar de toda a bagunça que há por aqui. Então, em tese, para José o estranho poderia ser um inimigo vindo do espaço. Ou não.
Bem, de repente, não mais que, no meio da conversa futebolística, esse indivíduo fica meio alterado, sobe o tom, e diz que José só pode estar falando grego. Como assim, se José nem mesmo sabe muito bem pronunciar algumas palavras complicadas em português e sempre fica na dúvida se o correto é idiossincrasia ou indiossincrasia, já que tem muito índio, muito indígena no noticiário ultimamente. José tem certeza absoluta de não estar na Grécia no momento, e sim no Rio de Janeiro num bar da Lapa. Ainda por cima desconhece completamente em que rua do bairro fica o ponto de ônibus mais próximo para embarcar para Atenas. Sabe apenas que um filósofo de lá, um tal Sócrates, tomou veneno por engano (dos outros, não dele) ou tomou um vinho estragado, qualquer coisa assim, e morreu, mas ele não tem muita certeza de nada disso agora.
As coisas não podem ficar assim nebulosas, José deve fazer uma escolha dentre as alternativas abaixo, a melhor de todas, é claro, visando finalizar a situação. E não pode contar com a ajuda de Sartre, mesmo porque ele está morto desde 1980, além do que jamais leu um livro dele. Tampouco pode contar com a ajuda de um eventual filósofo de botequim, que na Lapa há muitos desses sujeitos, no Brasil todo, aliás. A liberdade total de escolha é dele; as alternativas são apenas quatro, por restrição do espaço redacional:
(a) José diz ao estranho que ele é que está falando grego, porque deve estar bêbado, que não quer mais papo, que é pra ele sumir de sua vista;
(b) José acha que não vale a pena discutir com o sujeito, dá o último gole na cachaça, paga a conta, diz boa noite para todos e vai pra casa refrescar as ideias e o corpo, tomar um banho e depois um suco de caju;
(c) José pensa mesmo que pode estar falando confusamente, que algo mais grave esteja acontecendo com ele, e então amanhã sem falta vai marcar uma consulta com o psiquiatra da família, o Dr. Guandu;
(d) José fica por ali mesmo acreditando que o universo etílico inteiro esteja conspirando contra ele e seu time do coração, especialmente o estranho, então manda todo mundo ali do bar tomar na rima, naquele lugar.
Vamos ver no que isso deu. José fez a escolha certa? Parece que não... Numa situação como essa o ideal seria ter escolhido a alternativa (b). Mas como escolheu a alternativa (d) porque sempre foi valente e não levava desaforo para casa, nem mesmo quando não fora desaforado, então agora não tem mais condição de ler qualquer coisa, de responder a qualquer pergunta, de fazer qualquer escolha e muito menos de tomar um gole de cachaça, porque aquele foi o último mesmo, le dernier. A turma daquele bar não era de levar naquele lugar. Quem levou foi José ao fazer uma péssima escolha quando poderia ter feito escolha alguma, porque era um homem livre. Azar.
Então, au revoir, meu amigo José... Nos vemos no purgatório um dia. Porque o inferno é para os outros, melhor, o inferno são os outros, como também escreveu Jean-Paul Sartre.