A BATALHA DE CURUZU

Dizem que a história do Brasil é um amontoado de fatos e invencionices sem heróis. Pois é... nem tudo fica registrado nos anais da história.

Antes do registro histórico, o que acontece passa pelo filtro de moralidade, da vergonha, do descredito, do interesse, etc.,, da elite dominante ou do historiador interessado.

O que será narrado a seguir, dizem alguns, nem aconteceu; outros, que é melhor esquecer.

Mas, aconteceu, há muitos anos numa cidade aqui por perto de Araçatuba; que hoje nem sequer tem o mesmo nome da ocasião dos fatos. Isto porque, posteriormente, lá pelos anos 40 do século passado, muitas mudaram de nome, como Bilac, Presidente Alves; e outras desapareceram, como Laborioux, Iporangá, Machado de Melo, etc ....

Naquele tempo, devemos lembrar, os únicos meios de comunicações eram os jornais e os rádios. O primeiro demorava para chegar no interior, e ambos seguiam os interesses políticos dos proprietários.

Não eram confiáveis.

As estradas eram mal traçadas, não pavimentadas e se prestavam mais para o trânsito de carroças e boiadas. Expunha o viajante a um sacrifício extenuante.

E o único meio de transporte efetivo e eficiente eram as ferrovias.

Na ocasião dos lamentáveis fatos aqui narrados, era época de eleições a presidente, governador e deputados.

Como acontece hoje, os partidos faziam alianças, conchavos, e outros inenarráveis acordos que dão vergonha contar, pois nada mudou,

O mundo, e o Brasil, é assim, desde que lá na Grécia antiga inventaram a democracia.

Os membros do partido principal desses acontecidos, resolveram copiar os norte americanos.

Alugaram uma locomotiva a vapor e dois ou três vagões decorados de propagandas políticas. Bandeiras do Brasil, "slogans" e palavras de ordem.

A ideia era embarcar todos os candidatos na trem comitiva: a governador, deputados, políticos e puxa sacos.

Saíram de Bauru e foram descendo a linha noroeste, até a barranca do Rio Paraná, parando nas cidades menores para palanques de comícios ligeiros, pedir votos, falar mal do adversário, estreitar os laços com os correligionários do local e a população em geral.

Na maioria dessas cidades menores, o comício era feito na própria estação da estrada de ferro.

Nas cidades maiores, e com mais recursos, a comitiva buscava chegar sempre ao entardecer.

O candidato a governador era recepcionado na casa do prefeito ou do chefe do partido político, onde tomava banho, participava de um banquete e depois ia dormir.

Os demais dormiam em hotéis ou residencia de alguém.

No dia seguinte, reiniciavam a jornada, com um ligeiro discurso de despedida, onde imperava elogios à população local.

E foi assim, com absoluto sucesso, que foram adentrando ao interior da noroeste do Brasil e de São Paulo.

Dessa feita fatal, ao escurecer, pararam numa cidade que por respeito aos seus moradores não darei o nome, mas que no tempo do ocorrido era conhecida como Curuzu.

O trem estacionou na estação lotada de pessoas.

O candidato a governador saiu acenando para todos.

O prefeito, acompanhado do presidente da câmara legislativa, entregou-lhe as chaves da cidade.

Rojões explodiram no céu; e a banda local, (a "Furiosa"), tocou um bordão patriótico.

Muito gritos de "viva fulano", "hurra", etc.

Num palanque improvisado falaram os candidatos a deputado, e no final o candidato a governador, obviamente a pessoa mais importante da cidade.

Muito "apoiado", "abaixo os comunistas melancias, verde por fora, vermelho por dentro".

Uma dupla de violeiros, cantou junto com a população: "varre, varre vassourinha/ varre, varre a bandalheira/ o povo já está cansado/ de tanta sujeira".

Tudo foi festa.

Depois encaminharam-se a pé e em comitiva para a casa do prefeito, distante um quarteirão da estação ferroviária.

Ali o candidato a governador foi recebido pela dona da casa, dona Cicinha, que junto à empregada, levaram-no ao banheiro, para que pudesse fazer as "necessidades", tomar um banho, e vestir roupas limpas.

Depois, na ampla sala de jantar da casa, (o prefeito também era um grande cafeicultor e proprietário rural), foi oferecido ao visitante um nababo banquete, no qual participaram todas figuras importantes da cidade, como o chefe da estação, o padre, o farmacêutico, o dono do cinema, etc., afora vereadores e correligionários que contribuíam monetariamente.

E o candidato empanturrou-se de torta de camarão, palmito, leitoa à pururuca, torresmo de panceta curtida na cachaça, feijão gordo, arroz de suam, etc, tudo regado as melhores bebidas e licores.

Por volta da meia noite a festa acabou.

Todos foram embora e a dona da casa levou o visitante ao quarto de dormir a ele destinado.

Mas, antes, no momento em que lhe foi dado a palavra para um discurso, o dono do jornal impresso da cidade, entregou-lhe um exemplar da edição histórica da visita, do jornal de sua propriedade: "O Baluarte da Democracia", que tinha por lema impressa em letras garrafais a pomposa frase: " O que o Baluarte não deu, não aconteceu!".

Uma merreca de jornalzinho de quatro páginas, mas que naquele dia histórico, tinha oito, onde noticiava-se todo tipo de puxa-saquismo político, poesias das mocinhas sonhadoras, de candidatos a Olavo Bilac, tudo misturado às propagandas de coisas do comércio local.

Esse exemplar iria desencadear a tragédia.

No quarto de dormir o candidato a governador tirou as roupas, e meteu-se embaixo dos lençóis apenas de cueca.

Dormiu rapidamente; pois estava cansado.

Em certa hora morta acordou.

Revirava-lhes os intestinos. Comera em demasia.

O caso era urgente.... seja lá o que lhe havia nas tripas, cantava bastante alto e bom som a marchinha carnavalesca: "Ô abre alas que eu quero passar...".

O candidato levantou-se, abriu a porta e olhou o corredor.

Horas vazias; tudo no maior silêncio.

Arriscou uns passos no corredor: "onde ficava o banheiro ?". Não lembrava.

Olhou as portas fechadas, todas pintadas da cor creme, todas iguais... em qual bateria para indagar do banheiro?

Todos dormiam.

E se batesse na porta errada ? Não sabia qual era a do casal e quais eram dos filhos, sogra e empregada.

E agora ?

Ao voltar para o seu quarto viu o vaso de ráfia que ornamentava a porta do seu quarto.

Resolveu urinar nele.

A terra do vaso absorveria, ninguém iria notar.

Essa parte líquida se resolveu.,

No quarto lembrou-se do exemplar do jornal "O Baluarte da Democracia", de oito páginas.

Pegou-o, abriu-o completamente ao lado da cama, cocorou-se, e aliviou-se da parte sólida.

Depois abriu a janela que dava para a calçada da rua, pegou o jornal cuidadosamente com os dedos pelos quatro cantos e jogou-o pela janela, depois fechou-a. Tinha certeza que não fora visto.

Com o peso o jornal caiu no calçamento abaixo da janela e abriu-se qual flor rara e mal cheirosa, expondo seu nojento conteúdo.

A seguir o candidato a governador retornou à cama e dormiu o sono dos justos.

O que o candidato não contava era com os costumes do povo do interior do Brasil.

Logo que amanheceu ele foi acordado por um foguetório e um burburinho de pessoas em frente à casa onde estava hospedado.

Era o que por aqui no interior paulista chama-se "Alvorada Patriótica", ou seja, a municipalidade, para saldar o convidado, solta foguetes e rojões para acordar a população e espantar passarinhos e cachorros.

A seguir a banda musical, (lembre-se: "Furiosa"), atacava de músicas cívicas e os figurões da cidade discursavam para o povo.

No nosso caso, discursava também para o convidado que desconhecia a presepada.

O candidato abriu a janela e ali estava uma centena de pessoas, a frente deles a banda musical e à frente da banda o prefeito, o presidente da câmara legislativa e o chefe do partido.... ah !... também o jornalista proprietário do jornal "O Baluarte da Democracia", que segurava numa das mãos o improviso do seu discurso.

Foi esse último quem fez a descoberta.

Olhou para o monte esquisito em baixo da janela, deu alguns passos, curvou-se, sentiu o cheiro, horrorizou-se e anunciou para a todos em alto e bom som:

_____ Defecaram na Democracia.

A banda, que executava um dobrão cívico, apagou-se com um "uoooollllll", como um toca disco que é tirado da tomada.

O candidato a governador fez cara de "não tenho nada a haver com isso!", e estampou na face uma disfarçada ofensa que ganharia no cinema um Oscar de melhor ator.

O prefeito e o chefe do partido exclamaram: "foi um ato de terrorismo".

Boca de Burro, um mendigo que passava os dias e as noites na praça pública, tomou a frente de todos, elevou a garrafa de cachaça acima da cabeça e gritou alegre:

______ Viva Getúlio !!!

E, para evitar uma surra, correu em direção ao comitê do Partido Trabalhista.

O chefe da guarda municipal, sempre rápido para apontar culpado, exclamou:

______ Foram os trabalhistas os autores da infâmia !

O prefeito e o presidente do legislativo pegaram o jornal "Baluarte da Democracia" pelas pontas limpas e começaram a caminhar em direção ao Comitê dos Trabalhistas:

_________ Vamos devolver essa nojeira a eles...

E começaram a caminhar em direção à sede dos adversários:

Dona Quiquinha, esposa do chefe dos integralistas, (e que integravam a comitiva com os seus pares vestidos com a farda verde - por isso conhecidos como "galinhas verdes"), saiu para a rua com o penico branco na mão, cheio de sólidos e líquidos da noite passada, (e que naquela hora matina iria despejar na privada que ficava no quintal), entregou-o ao marido dizendo:

_________ Leve mais munição ...

Os opositores da fina elite política daquele município, eram os Trabalhistas, quase se pode dizer: a maioria dos deserdados da cidade que não tinham interesse ou chance em emprego na prefeitura.

O comitê de campanha Trabalhista, era um velho casarão decrépito e abandonado, que foi logo apelidado de "Chiqueirão".

Nesse comitê, aparelhado apenas com algumas cadeiras e bancos de madeira, e uma mesinha que era ocupada por folhetos de propaganda dos candidatos, reuniam-se os violeiros, os cantores alcoolizados, os boêmios, as velhas e tristonhas prostitutas, etc.

Mas, já naquela hora da alvorada, dado os festejos do adversário, já contava com a presença dos candidatos a cargos municipais, todo diretório do partido e simpatizantes em geral.

O prefeito chegou com a infame mercadoria e disse em voz alta:

__________ Viemos devolver os "ideais solidificados" desse infame partido de vagabundos.

O chefe dos Trabalhistas, (que também era vereador eleito em plena vigência do mandato), retrucou:

__________ Alto lá ! ... Assim Vossa Excelência ofende as nossas Excelências.... e cuspiu em direção ao prefeito.

Este, furioso, jogou o pacote de merda dentro do diretório, atingindo o presidente do partido e outros aos seu lado.

Os integralistas, (que haviam recolhidos outros penicos cheios pelo caminho), esvaziaram-nos lançando os conteúdos sem direção certa, dada a muvuca que se formou.

Basta dizer, que os ternos brancos do prefeito e do presidente da câmara dos vereadores, tingiram-se de marrom.

Chegaram a turma do "deixa disso" que pertenciam aos dois partidos.

E, depois de muita pancadaria, lutas no chão imundo, cusparadas, (houve um que até mijou na cara de um trabalhista que havia desmaiado durante a luta), as coisas serenaram.... e todos voltaram para casa para o banho necessário.

Antes disso, porém, o candidato a governador e seus pares, resolveram fugir da cidade, consideraram a situação muito tensa.

Correram para a estação, embarcaram no trem e pirulitaram-se...

À tarde, na Câmara Municipal, em sessão de emergência, políticos da situação e da oposição reuniram-se para tratar do assunto:

_________ O que aconteceu hoje aqui em Curuzu ninguém de fora pode saber. Está proibido comentar sobre o assunto.

O jornalista pediu a palavra:

_________ Meus cidadãos.... o lema do nosso jornal "Baluarte da Democracia" é: "O que o Baluarte não deu, não aconteceu !";. portanto, nada vamos noticiar a respeito e peço a todos que fiquem de boca fechada nos próximos cem anos (censura que no futuro um certo presidente maluco faria com sua ficha de vacinação - mas isso é outra história).

E assim foi feito.

Na tarde daquele mesmo dia, dona Cicinha, mulher do prefeito, chamou a empregada, mostrou o vaso de ráfia que ornamentava a porta do quarto (e que o governador havia urinado dentro na madrugada) e disse:

________ Veja Joana.... a ráfia morreu.... secou.... cruz credo!! Deus me livre de um candidato que seca as plantas por onde passa...

No dia seguinte, logo que abriu a prefeitura, o professor de português da escola estadual pediu audiência com o prefeito.

Entrou no gabinete e abriu o dicionário na palavra "Curuzu", nome da cidade e explicou:

_________ A cidade já estava predestinada a essa vergonha.... veja aqui no dicionário do que significa "Curuzu".... leia....significa: "Excremento", "Bolo fecal".... (e gritou) " quem foi o filho da puta que nos deu esse nome ?".

E ali mesmo, naquele momento, redigiram um requerimento endereçado à Câmara Municipal propondo a mudança de nome do município para alguma suposta palavra indígena "Tupi guarani" , com significado obscuro e mais apropriado.

Desnecessário dizer que a proposta foi aprovada na Câmara por unanimidade.

A culpa pela autoria da "obra fecal" no "Baluarte da Democracia" recaiu em Boca de Burro, mendigo que morava na praça municipal; mas, dizem outros, que foi uma esperta armação do professor de português para mudar o nome da cidade.

Mais tarde, já eleito, o governador candidato fez cagadas piores.

Mas isso é outra história.

......................................................................................................................................................... Ata, 01/04/2023 (dia da mentira Sajob

Muito obrigado pela leitura.