Pagando contas eternamente

Estando sozinho em casa, no silêncio da tardezinha que escurecia sem alarde, pouca coisa poderia perturbá-lo mais do que seus próprios pensamentos acinzentados. Especialmente um deles, ligado aos remédios que tomava, à estressante crise por que vinha passando e que o afastara do trabalho até quando ele não saberia dizer exatamente.

Os médicos da organização é que tinham a palavra final. Ele precisava tomar a medicação corretamente e manter a calma sempre, lhe diziam a cada consulta de retorno. Com muito sono, efeito dos remédios, decidiu desligar a tevê à qual não estivera prestando muita atenção. Exibia-se um filme russo que aumentou seu sono, então pensou em tirar outro cochilo ali mesmo, instalado em sua confortável poltrona.

Pegou o controle caído no chão e desligou a tevê: tentar ver aquele artístico exemplar cinematográfico lá das terras geladas de Tolstoi e Dostoievski até o final seria não apenas uma completa perda de tempo: manter os olhos abertos e a mente alerta seria um sacrifício. Se fosse para ver a reprise de algum filme de Andrei Tarkovski, ainda vá lá, tentaria ver de bom grado, mas não era nada disso...

Nesses dias, quando desperto, sempre pensava neles: não exatamente no cineasta ou nos escritores russos, mas nos dias que se foram, no tempo passado perdido para sempre a ver filmes interrompidos bem antes do final, a dormir na tardezinha ou a fazer alguma coisa inútil enquanto deixava de fazer algo necessário ou importante.

Mesmo assim acreditava ter encontrado, semanas atrás, não na conhecida obra de Marcel Proust - que tinha completa na estante e que buscava no passado francês o tempo perdido -, mas num velho livro presenteado por um igualmente idoso professor da faculdade de Direito vários anos antes, um volume que nos últimos tempos folheava de vez em quando e do qual lia trechos uma ou outra vez, a resposta para a pergunta que às vezes e há tempos costumava fazer a si próprio.

A seguinte pergunta: até que ponto é sensato dizer que o tempo não passa, como quando estamos vendo um filme desinteressante como o de há pouco? Ou então, que ele passa rápido demais quando estamos de férias dos estudos ou do trabalho ou ainda, que passa muito lentamente se estamos no dentista fazendo tratamento de canal? Somente até certo ponto; justamente aquele em que esbarramos no pensamento do autor do livro que lhe fora presenteado, Friedrich Nietzsche.

Mas ninguém precisava ler o filósofo alemão, que não é lá muito fácil de ser lido e entendido mesmo (e qual filósofo importante é?), para constatar que não é o tempo que passa rápido ou lentamente ou que deixa de passar. Pelo contrário. O tempo está presente em nossa vida o tempo todo, ininterruptamente: nós (e todas as coisas) é que vamos passando por ele. E certamente, num belo dia, tudo o que conhecemos hoje passará de vez, mas o tempo permanecerá posto que é eterno. Todavia, mesmo essas coisas todas que passaram continuamente retornarão sobre outra forma, mas mantendo sua essência, num eterno devir, num eterno retorno.

É mais ou menos assim como ocorre com certos técnicos de futebol que estão sempre saindo e voltando para o mesmo clube em que atuaram no passado e atuarão no futuro. Foi isso o que ele depreendeu de suas breves leituras de algumas páginas de Nietzsche. E a seguir passou a repetir para si mesmo que o que o filósofo estava dizendo a todo mundo que o lia é que o tempo não passa, não acaba nunca, é eterno, está presente o tempo todo. Portanto, não adiantava muito dizer que você ou alguém estava "matando o tempo" porque ele, ao contrário das pessoas e das coisas, é imortal.

Assim, somente o tempo é para sempre e nada mais, ainda que as coisas estejam indo e voltando no tempo. Definitivamente, ele não passa nunca, somente ele é eterno, imortal. Repetiu isso para si mesmo, que a única coisa que era para sempre era, ou é, o tempo. E “Nada é para sempre”, verdade que aqui no sul - muito distante das filosóficas terras alemãs -, onde o tempo cronológico muitas vezes é confundido com o tempo meteorológico, serviu até de título para um filme dirigido por Robert Redford (originalmente A River Runs Through It), há mais de três décadas e que tinha Brad Pitt como um dos protagonistas.

Ele se lembrava dessa fita, tinha visto o drama no cinema, não na tevê em sua casa. Na verdade, se lembrava muito mais do título do que propriamente da história que, parece, tinha um rio no meio e também alguma pescaria, algo assim. Pitt, naquela altura do campeonato cinematográfico era um jovem ator que fisgava, dentro e fora das telas, peixões como Telma & Louise e outras tantas garotas levadas da breca. Não passava pela cabeça do rapaz sapeca que um dia teria muitos filhos para cuidar e tampouco sonhava que contaria com a ajuda de Angelina Jolie para isso e muitas coisas mais. Mas não para sempre, porque nem mesmo o casamento de Pitt e Jolie foi eterno enquanto durou, conforme aquele poema de Vinicius de Moraes, acabou faz alguns anos já.

E então, nisso pensando dormiu, porque a vida dele não tinha nada a ver com a vida dos astros e estrelas de Hollywood. E afinal de contas, era melhor se interessar por escritores, pensadores, filósofos, do que por atrizes e atores de cinema, embora nenhum deles pagasse suas contas, mesmo que os primeiros lhe trouxessem reflexão e os últimos lhe proporcionassem diversão. Quem pagava as contas da livraria ou os ingressos na bilheteria de cinema e todas as demais despesas era ele mesmo, ninguém mais. Além disso pagava as contas da mulher e dos filhos. Contas que não acabavam nunca, feito o tempo e que com ele não diminuíam, simplesmente aumentavam; contas eternas, infindáveis...

Agora, se não estivesse dormindo, ele poderia perguntar: diferentemente do que ocorria com ele e com quase todo mundo, alguém vem pagando suas contas sem que você saiba ou necessite botar a mão no bolso, caro leitor? Se sim, provavelmente as coisas não tenham nada a ver com o alemão Nietzsche, mas com o austríaco Freud. Ou, pior ainda, com a brasileiríssima Receita Federal e seu leão insaciável...