Carnes Baratas
- Helena, sabe daquela minha camisa azul?
- ...
- Helena?
- ...
- HELENA!?
- Ai, dona Zuleica! Pra que essa gritaria?
- Porque você não ouviu quando eu chamei antes. Tava pensando na morte da bezerra?
- Da bezerra, não. Daquele moço... O que foi morto no quiosque, no Rio.
- Horrível, aquilo.
- E, também, naquele outro, que foi assassinado pelo vizinho.
- Revoltante! Os dois casos.
- Daí, tava lembrando daquela música, daquela cantora que morreu esses dias.
- Qual?
- Uma descabelada, da voz grossa.
- Elza Soares?
- Isso.
- Qual música?
- Uma que fala que a carne negra é a mais barata do mercado.
- Sim. Tocou bastante logo após a morte dela.
- Então. Esta semana, teve aquele mané lá que defendeu o nazismo e deu o maior auê...
- Foi. Até o Aras, que nunca faz nada, tá querendo processar o cara.
- Já o Bozo, não deu uma palavra pelos mortos, mas quer investigar a invasão lá da igreja em protesto.
- Bom... Concordo que a invasão da igreja foi desnecessária. Alguns dos culpados já estavam presos. Foi só para dar munição para o presidente.
- Tá. Pode ser. Mas...
- Sim, Helena! Concordo com vc. Senão ele, ao menos a Damares tinha que se manifestar. Mas, se te consola, também não devem se manifestar pelos judeus.
- Não consola.
- A vida dos outros não importa para essa gente. Vê a pandemia. Vê a campanha contra a vacinação infantil.
- Fico pensando... Quantos outros morrem igual? Sem causar alarde... Nas operações policiais...
- Isso está começando a mudar.
- Tá nada, dona Zuleica! E o rapaz lá que foi preso injustamente?
- Pois é. Mas já foi solto. A sociedade está mudando.
- Dava para ser mais rápido, não? Cansada de ser a carne barata. Cansada de ter medo.
- Talvez esse governo monstruoso ajude a acelerar as coisas.
- Como?
- Unindo todos que são contra ele, pelas causas que ele combate.
- Sei não. Pra mim, o que ele fez foi soltar os monstros.
- É verdade. Ele deu poder e voz a essa gente. Mas, por outro lado, ao tirar esses esqueletos do armário, ele também os submeteu ao julgamento da sociedade, que não aceita mais essas coisas.
- O tempo dirá. Espero viver até lá.
- Vai viver. Ei! E minha camisa?
- Ai, dona Zuleica, nem te conto. Sabe essa água sanitária que fica aqui em cima?
- Putz! Melhor nem contar mesmo! Acabei de dizer que você vai viver, não quero ter que me desmentir.
Texto publicado na minha coluna semanal do jornal Alô Brasília
Ou veja uma versão um pouquinho menor na edição impressa:
alo.com.br/impresso/qui-03-02-2022/
Estou na página 8, Vida & Lazer