CAPITÃ BOSTINHA

Com o passar do tempo, a medida que a vida avança, vamos nos esquecendo de certas coisas.

Mas basta uma palavra, um signo, para que nossa mente busque a imagem correspondente e tudo o mais que está agregado a ela: fatos correlatos, sensações e até cheiro, voltam a nossa memória.

Tenho ouvido muito falar de certa capitã; de modo que me lembrei de outra.

Pois bem...

Na minha infância éramos vizinhos de uma familia de negros. Tinham vindo do Nordeste, Chapada Diamantina, Bahia salvo engano, e se estabeceram trabalhando na lavoura de algodão. Posteriormente mudaram-se para a cidade e se instalaram com um bar e mercearia para atender vaqueiros, peões e pessoas pobres.

Para tanto, construíram um prédio grande de alvenaria. Na frente ficava o bar; logo depois um salão que utilizavam para a celebração do "jarê".

Como minha senhora?

Não sabe o que é jarê?

"Jarê" é um culto de origem africana que é menos ortodoxo que o candomblé: agrega fundamentos do espiritismo e religiosidade católica.

É crença de encantamento popular, que busca a paz do espírito e a cura do corpo mediante o uso de rezas, cantigas, ervas medicinais e elementos naturais.

Voltemos aos fatos...

Nos fundos ficava a residência da família e havia muitos quartos. Um deles guardava segredos. Estava quase sempre fechado por uma cortina de tecido vermelho com estampas amarelas.

Mais tarde vim a saber que eram as cores dedicadas à Santa Bárbara. Para quem não sabe Santa Bárbara é cultuada na igreja católica, na ortodoxa grego-russa-ucraniana, anglicana e em algumas outras mais.

No imaginário popular brasileiro ela é Iansan, rainha dos ventos, das guerras e das tempestades.

E deusa do derradeiro recurso, daí o ditado:

"só se lembram de Santa Bárbara nas horas de desespero do último momento da vida".

Até queimam ramos para invocá-la.

Naquele tempo chegou à cidade uma médica formada. Virou assunto em muitas rodas, haja vista naquela época ser novidade mulher na medicina.

Embora o povo ainda estudasse a sua presença e comportamento na sociedade para julga-la se era digna ou não de confiança, o fato era que por necessidade ela era muito consultada.

Aconteceu porém, oh tragédia!, que um dia ela em momento de lazer na jardinagem fora picada por uma cobra que fugiu pela folhagem rasteira sem ser identificada.

Seria venenosa ou não?

Não se tinha certeza.

A médica buscou socorro entre um colega de profissão que, pelo sim, pelo não, indicou-lhe um soro antiofídico.

O problema é que não havia soro antiofídico.

Mandaram buscar em cidade distante mais de duzentos quilômetros.

Levaria algumas horas; tempo em que ela poderia morrer.

Angustiada ouvira falar do pai-de-santo nosso vizinho.

Considerou que não haveria mal algum consultar-se com ele, enquanto aguardava o soro.

Acolhida, foi levada pelas mulheres da casa para o quarto dedicado à Iansan, e que era conhecido como "Quarto dos santos".

Sentaram-na no centro do lugar, em uma cadeira de madeira, ornada com papel crepom e flores do mesmo material.

Para quem nunca viu um "quarto dos santos" descrevo: é um quarto com um altar da altura do peito de uma pessoa e comprido em toda extensão. É todo enfeitado por flores de plástico, ou naturais recém colhidas e outras secas.

No centro reina a imagem de Iansan (pode ser outra entidade, a critério do pai de santo), e ao redor e por toda extensão, imagens de santos em gesso, madeira ou metal; misturado a tudo molduras com fotos de pessoas que ou já receberam graças ou são membros do jarê. No chão, por todo lado, muletas, peças de gesso que emolduraram uma perna ou um braço quebrado, ou figuras de cera representando órgãos humanos. É comum, também, brinquedos, bonecas e fantoches, caso o abençoado pela graça fosse uma criança ou um feto. Cobras em vidro e conservadas em álcool igualmente são comuns.

No caso em pauta, a iluminação era difusa e vinha da luz solar, pelos vãos das frestas do telhado.

O cheiro era de ervas aromáticas e incensos, e o ambiente um pouco sinistro.

Vamos em frente...

A médica picada pela cobra ficou ali sentada, com todos sentidos alertas, assimilando o lugar.

Nisso chegou o pai de Santo paramentado com uma saia vermelha, blusa amarela, uma espada de São Jorge na mão esquerda, a direita livre e um charuto aceso na boca.

Tinha por acompanhante a sua esposa, que se fazia de mestre de cerimônia, também devidamente com paramentos, saia e blusa de cetim branco e azul claro e colares de contas coloridas no pescoço e nos braços.

Orientada pela assistente para não se mover e fazer muda oração de sua preferência a médica ficou estática.

O pai de Santo rodeou-a; examinou o ferimento; disse algumas palavras mágicas e soltou um comprido lamento.

Depois foi até o altar onde havia uma vela com as cores de Iansan.

Acendeu-a rezando um mantra misterioso.

A assistente explicou à paciente que a vela sinalizaria o seu destino: se permanecesse acesa ela viveria, se a chama apagasse ela morreria.

A chama, caprichosa, ficou tremulando, em dúvida entre uma coisa e outra.

A paciente, assustada, começou a recordar todas as imagens e lembranças da sua vida.

Considerou que era cedo para morrer.

O soro antiofídico iria demorar... ou quem sabe nunca chegar.

Um medo terrível apoderou-se dela.

A assistente acendeu no altar um fogareiro à álcool e colocou nele água abençoada.

O pai de santo lançou dentro algumas ervas misteriosas.

A vela acessa tremulava , indecisa entre apagar-se ou permanecer acessa.

A vida ou a morte.

Numa bandeja de prata, a assistente trouxe para o mestre dos mistérios algo indefinido.

O pai de santo continuava com a repetitiva ladainha.

Aquele algo indefinido na bandeja, a médica identificou pelo cheiro e pelo formato, como um pequeno trocinho seco de merda branca de cachorro.

O pai de santo agora dava giros com o corpo e cantava cantiga invocando a cura misteriosas pelos meios indecifráveis e improváveis.

A assistente pediu à paciente que ela não se preocupasse: da merda ela iria beber apenas uma pequena raspa junto com o chá, porém era de grande importância para a cura.

Mas a infusão nunca fervia.

E a chama da vela, da vida ou morte, não se decidia entre apagar ou permanecer acesa.

Era assustador.

Foi quando a doutora não resistiu mais a tensão.

Num salto arrebatou o trocinho de merda branca de cachorro e colocou na boca dizendo:

"Enquanto não fica pronto o chá da magia, eu vou chupando essa bostinha."

O soro da vacina demorou um ano para chegar, mas ela não morreu.

Depois, durante a vida, a médica continuou a clínicar e a receitar remédios...

sempre dizendo ao ouvido dos pacientes:

"Tome os remédios como prescrevi... mas como a medicina não é uma ciência exata é bom se prevenir chupando um trocinho seco de coco branco de cachorro,... uma bostínha".

A exemplo da Capitã America, heroína que resolve por meios inacreditáveis as crises dos norte-americanos, ela passou a ser conhecida como:

"Capitã Bostinha".

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Espero que não acreditem nesta história que é uma peça de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais, é mera coincidência e fruto da bagunça de credibilidade e da negação da ciência no momento atual do Brasil. Presto homenagem e enorme respeito às religiões de origem africanas; " ora yê iê, ô ! " ("Ore por nós, mãezinha!")

Vacina já!

Obrigado pela leitura.

Pium-TO, 23 de maio de 2016 + 5.

Sajob