NOSSA VIDA VIROU UMA PIADA.... DE MAU GOSTO NATURALMENTE!!!

Bolsonaro defende volta ao trabalho. Quem cruzou os braços foi ele

Estamos no limite.

De manhã, antes que a criança de sete anos acorde, corro para os jornais para saber do que acontece.

O ideal é ler os três principais diários do país logo cedo. Ao menos dois.

A depender dos compromissos, é preciso correr para começar as leituras do dia antes dos primeiros raios luminosos. Quatro, quatro e meia da manhã e o café está pronto.

Às seis, ela se levanta e monta a armadura antes de seguir para o trabalho, num posto de saúde da cidade. Máscaras, face shield, toucas, jaleco, luvas. Um astronauta antes de sair de casa perto das seis e meia da manhã.

Tem sido assim há mais de um ano.

Os dias se repetem e se parecem. Das datas não lembramos quando foi Natal, quando foi aniversário ou quando foi Sexta-Feira Santa. Não há motivos para festa nem sabemos rir à toa.

Com sorte a criança acorda antes das sete. Com azar, entre cinco e cinco e meia. Neste caso, os planos se frustram e o trabalho se acumula e se confunde com outras tarefas. Ligar o computador. Botar a senha do programa de vídeo. Cada aula é um código. Às sete e quinze, o sinal.

Meu ambiente de trabalho, então, migra para uma sala de aula lotada e barulhenta onde posso ouvir a voz da professora e a algazarra de crianças levantando as mãos com as ferramentas online pedindo atenção. “Tia”, “tia”, “tia”.

Cada aula sem música infantil é uma vitória. A professora, como tantas, também está no limite.

Com sete anos, o grau de independência de uma criança na frente de um computador não difere da de um adulto sem habilitação no comando de um avião. As demandas são permanentes — e nos últimos 13 meses esse passou a ser seu apelido: demanda permanente.

Que livro é esse? Qual a página? Onde está a tarefa? O lápis está sem ponta. A caneca de água esvaziou. Derrubei de novo. Empresta celular? Posso ver TV? Quero pão de queijo. Não na assadeira, na chapa.

E então é a hora do almoço.

O telefone toca. Quando não é engano é cobrança; quando não é cobrança é alguma oferta; quando não é oferta é golpe.

Respiramos. O pacote da internet fibra recém-contratado é o pedaço de cenoura na ponta do nosso nariz. É preciso trabalhar para pagar a conta. E pagar a conta para ter uma conexão decente. E ter conexão decente pra conseguir trabalho. E para a aula online parar de travar. E para que a criança possa estudar e tenha um trabalho para poder ter o próprio pacote de internet para poder trabalhar e pagar o estudo dos filhos e o pacote de internet para poder trabalhar.

A mãe volta do trabalho e eu me tranco no quarto. Entrevistas, por favor, só no meio da tarde. A justificativa é um discurso ensaiado: filho pequeno, sabe como é, não nos deixar a sós por mais de cinco minutos.

A entrevista quase sempre dura mais de uma hora. Precisa ser decupada. Deixa para amanhã. As leituras se acumulam em livros que não param de chegar à espera da resenha. Ano que vem vão dividir as prateleiras com as leituras da pós, que prometo começar sem falta. Meta diária: 50 páginas de livros. É preciso entender o próprio cansaço. Se não fica difícil correr para acordar antes da criança e evitar o engarrafamento no tráfego das demandas permanentes no fim da madrugada. Se não for insone é lucro.

Por enquanto preferimos evitar os remédios.

No fim do dia, estamos só o pó da rabiola. Todos. Quando me deito, ainda posso ver e ouvir as batalhas dos personagens de Dragon Ball Z, onipresentes na TV nos intervalos entre aulas e tarefas. Nesses intervalos, diante das crianças, encarnamos o personagem de Roberto Benigni no filme "A Vida é Bela". Precisamos reconstruir o mundo possível para que o mundo real, pandêmico, mortífero, não as estraçalhe.

Não lembro quando foi a última vez que conversei com um adulto para qualquer assunto que não fosse crianças ou temas relacionados ao trabalho.

Estamos esgotados. Os sinais de esgotamento estão nos olhos que podem ser observados numa fresta do capacete dos entregadores que chegam, devidamente equipados, na porta de casa. A conversa é mínima porque as entregas são muitas. Todos correm para se adaptar. Todos se adaptam para correr.

Nunca trabalhamos tanto. Nunca tivemos tanto medo de não ter trabalho.

Nunca privilegiamos tanto o trabalho de quem mora por perto —o vizinho que atravessa a divisa para trazer o queijo, o sushi-man que agora produz em casa e entrega de porta em porta, o barbeiro que improvisou a cadeira no quintal, a vizinha que começou a vender marmita. E o entregador que nunca precisou tanto da gorjeta.

Não é fácil nem podemos reclamar. Poder trabalhar de casa, sem correr riscos de contaminação no transporte público em direção a espaços fechados, não deveria, mas ainda é, privilégio. Respiramos fundo e seguimos porque desistir não é opção.

Precisamos estar dispostos para levantar no dia seguinte de madrugada e reconstruir as paredes e tetos destruídas pelas bombas que caem ao longo do dia. Elas vêm de todos os lados, do conhecido negacionista que está revoltado com o fechamento da quadra e te identifica como inimigo por defender estratégia parecida com a usada por Jacinda Ardern na Nova Zelândia, país que conseguiu isolar o vírus e registrou menos de 30 mortes em um ano de pandemia com o slogan: “seja duro, haja cedo”.

“Ah, mas pra você é fácil defender lockdown. Você trabalha de casa”.

Quando ouço isso, ofereço meia hora de trabalho invisível com uma criança de sete anos. Qualquer criança.

Os tombos são quase sempre invisíveis, embora fiquem cada vez mais evidentes nas olheiras e corpos fora de forma de quem não tem mais tempo nem motivação para retomar atividades físicas.

Pior é saber que esses estilhaços são meras baionetas perto dos bombardeios lançados diariamente por Brasília contra a própria população que prometeu colocar acima de tudo. O efeito-rebote é o desânimo.

“O brasileiro tem que voltar a trabalhar”, diz Jair Bolsonaro, o presidente que no último ano andou de cavalo, jet ski, filou churrasco no iate alheio, viu o filho comprar uma mansão, passeou e se aglomerou na praia em seu descanso do guerreiro que custou R$ 2,3 milhões aos cofres públicos.

Só não arregaçou as mangas para visitar hospitais e saber como tem sido a vida das equipes médicas que operam no limite em um país de aglomerações estimuladas onde se cuidar é coisa de “maricas” e quem perdeu seus entes é desafiado a engolir as lágrimas. “Vamos chorar até quando?”.

Há destroços por todos os lados. Mas é preciso acordar e levantar cedo para reconstruir os muros, os tetos e as paredes das casas diariamente. É preciso cobrar das autoridades apoio e auxílio a quem perdeu seus empregos na pandemia e não pode ainda se reinventar. É preciso cobrar por uma postura forme e coordenada em direção a medidas sanitárias e importância da vacina. E é preciso rebater as mentiras, uma a uma. É preciso contar a História com o rigor que ela exige. É preciso estar alerta para a sucessão de equívocos que levaram a essência do despreparo para o posto de liderança nacional no momento mais grave da nossa História. Para isso serve o jornalismo. Para isso servimos.

Em tempo. Quem quiser entender como funciona a tática bolsonarista de embromação tem no case de sucesso de Chapecó, município do interior catarinense governado por um aliado, um verdadeiro tutorial. Em um vídeo compartilhado pelo presidente, o prefeito da cidade, João Rodrigues (PSD), praticamente decretou a vitória contra o vírus ao mostrar o esvaziamento de uma unidade de tratamento semi-intensivo graças ao uso sem medo ou vergonha de vermífugos e outros fármacos. É uma história contada em partes. Fora dali, 100% dos leitos especializados disponíveis seguiam ocupados.

Oportunisticamente o comemora a diminuição no número de internações e dá a entender que deve tudo ao tal tratamento precoce. Na verdade, a cidade estava próxima do colapso, numa curva acentuada desde que Rodrigues assumiu.

Com cinco dias de mandado, Chapecó tinha 69 pacientes internados, segundo levantamento da Folha de S.Paulo. Em 5 de março, eram 351. No limite, entre 22 de fevereiro e 8 de março a cidade implementou um lockdown que interrompeu o liberou-geral promovido pelo prefeito, com liberação de festas, bares, batizados, casamentos e apresentações musicais.

Quando os casos explodiram, o prefeito precisou restringir até o comércio, mas isso ele não conta no vídeo. Hoje a cidade tem 193 pessoas internadas —menos do que no mês passado e bem mais do que no começo do ano. Não é que o prefeito e o presidente preferem ver só o copo meio cheio da história. Eles querem esconder o rombo que ajudaram a fazer no próprio recipiente.

Como dizia uma velha propaganda, é possível contar um monte de mentira dizendo só (parte) a verdade.