O Cascudo

Chuvosa goteira pingando, rede balançando, armador ringindo, céu relampeando e eu relembrando...

Quando mudei aqui pro Araturi, (nisso já se vão vinte e oito anos passados), um senhor de nome Damião era meu vizinho de frente. Numa noite de junho, estava com minha esposa num namoro bem acalorado, quando escutei uma discussão que parou, namoro, cerveja e tezão. Como todo sujeito enxerido que adora uma fofoca, pulei da cama e fui pro portão pra ver o que se passava. E lá estavam, Damião, dois policiais, uma senhora e um menino magricela que não tinha nem dez anos. Abri o portão e fiquei olhando aquela cena, a senhora explicava pros policiais que Damião tinha dado um cascudo no filho dela, Damião justificava o ato, (como se isso tivesse justificativa), que o acontecido foi motivado pelo fato do menino ter mexido na sua fogueira de festa junina e continuou explicando pros policiais que aquele era um menino sem pai e a mãe que era separada não tinha controle sobre o mesmo. Foi quando percebi que os policiais estavam propensos a acatar as justificativas de Damião em detrimento à agressão sofrida pelo menino. Aquele bom senso de não se envolver em assuntos que não me dizem respeito se diluiu na cerveja que agora começava a fazer efeito e na indignação ao ver que não haveria nenhuma conseqüência o ato cometido pelo agressor, me veio palavras incontidas diante daquela situação e falei mais pros policiais;

- pelo que pude entender, o garoto foi agredido por não ter pai, isso não é plausível!!! Pois se a falta da figura masculina justificar uma agressão de um adulto à uma criança, não teria porque uma mãe pedir a policia pra resolver a situação. Acredito que a lei aqui não vai ser aplicada, pois se for o agressor terá que ser conduzido a uma delegacia pra prestar esclarecimentos e responder pelo seu ato. Mas tudo bem, covardes sabem com quem mechem, pois se o menino tivesse um pai presente, com certeza qualquer um pensaria varias vezes antes de fazer o que este senhor fez. Um dos policiais me perguntou:

- O senhor é advogado?

Respondi;

- Não, mas conheço vários que posso acionar, caso seja necessário.

Ele respondeu;

- Não vai ser necessário.

Virou-se pro Damião e disse;

- O senhor vai ter que nos acompanhar até a delegacia.

Nisso minha esposa chega até o portão e pergunta;

- Amor tá acontecendo alguma coisa?

Respondi;

- Nada não filha, tava aqui só lembrando um cascudo que levei quando menino e nunca contei pro meu pai...

O Cascudo (parte II)

Estávamos eu e Ferreirinha assistindo televisão sentados no janelão da casa de Lica de João Maria, quando chega um senhor e pergunta;

- Quem é Claudo?

Respondi prontamente;

- Sou eu...

O homem com cara de poucos amigos pergunta;

- Por que motivo você quebrou minha pá de apanhar lixo?!!

Olho pra ele sem entender nada e digo;

- Não sei de que pá o senhor tá falando...

O homem diz;

- Meu filho disse que você quebrou a pá que ele usa pra apanhar o lixo enquanto ele tava varrendo nosso terreiro!!!

Então questiono:

- Não quebrei pá nenhuma, seu filho tá mentindo...

Ele me olha demoradamente e diz;

- Se eu tivesse certeza que foi você, lhe dava uns cascudos e depois ia resolver a situação com seu pai.

Respondi olhando fixamente ele nos olhos;

- Senhor pode ter certeza de uma coisa, se você me batesse eu não teria nenhuma defesa, visto que você é um homem e eu um menino, porem meu pai não saberia disso por mim, mas eu esperaria o dia que crescesse o suficiente e lhe procuraria pra ver como o senhor resolveria essa situação com alguém do seu tamanho.

Ele me encara por uns instantes, depois se vira e vai embora.

Olho pro Ferreirinha e pergunto;

- Você tem alguma coisa a ver com isso?

- Eu não Claudo, nem conheço esse homem.

Zé Maria, filho de Lica de João Maria diz;

- Claudo, ele é o pai de Cambado, que tava varrendo a rua, quando um caminhão passou por cima da pá, acho que ele ficou com medo de apanhar e colocou a culpa em você.

Ferreirinha olha pra Zé Maria e diz;

- Porque que você não falou pra ele isso?!!

- Eu não? Porque se o Cambado apanhasse, depois ele ia me dar uma surra.

Ferreirinha me puxa pelo braço.

- Vamos embora Claudo, parece que de macho aqui só tem nós dois. Olho pro Ferreirinha e digo;

- Não ouvi você falar nada quando ele ameaçou me bater.

- Também não viu eu segurando a tramela da janela, era ele levantar o braço pra você e eu sentar ela na cabeça dele.

Saímos, sabendo eu que o Ferreirinha era menino, mais doido o suficiente pra fazer o que tinha dito se o homem me agredisse.

Subindo a Maia Alarcon pergunto;

- Onde é que vamos assistir televisão agora?

- Vamos lá pra seu Chico Bandeira, afinal dona Chagas é sua madrinha e a gente ainda pode até comer umas bolachas sete capa com chá de erva cidreira, já que ela não toma café.

- Ah não Ferreirinha!!! Toda vez que vou assistir televisão lá, O Jossiler, me obriga a ficar com uma pena de galinha coçando o suvaco dele.

O Cascudo (parte III)

Tabuleiro se preparava pra mais um evento que, sempre acontecia na praça da matriz. O pavilhão no centro da praça dava suporte na venda de bebidas quente, cervejas e refrigerantes. Na época estava sob a direção de seu Oscar. A praça era dividida, de um lado barracas nas cores preta e branca, no outro barracas nas cores vermelha e azul, fazendo alusão à disputa entre os Times Ceará e Fortaleza. Da capital veio um senhor com um cilindro de gás hélio pra encher balões, o que se tornou novidade e alegria dos meninos, (os que podiam pagar é claro). Como não tinha dinheiro pra comprar um balão, ficava apenas admirando eles suspensos no ar sendo levado pelas mãos dos filhos de pais mais abonados, isso enquanto fazia voltas e mais voltas na praça, foi então que tive a minha primeira desilusão amorosa, bem ali na minha frente numa mesa da barraca do Ceará, estava ela linda e sorridente ao lado do sujeito que sem saber destruiu minha vida e me fez torcer temporariamente pelo Fortaleza, Célia de Adozimiro, minha professora do primário. Estava com o namorado, foi então que vi que ela não me esperaria crescer pra nos casarmos. Triste e sem esperanças procurei o Ferreirinha pra desabafar minhas magoas. Encontrei-o abaixado atrás do pavilhão mexendo numas garrafas, então pergunto;

- Ferreirinha que qui você tá fazendo aí?

Nesse momento vai passando um garoto com um balão, Ferreirinha se levanta e joga algo no balão, que estoura, então ele grita pra mim;

- Corre Claudo!!!

Fico feito uma estatua sem entender, nem saber o que fazer. Nisso a porta do fundo do pavilhão se abre e seu Oscar sai e me dá um cascudo, olho pra ele sem entender nada, enquanto ele diz;

- Isso é pra você aprender a não ficar quebrando minhas garrafas pra jogar e estourar os balões dos outros meninos!!!

São dores demais pra uma única noite, desiludido e injustiçado resolvo ir pra casa tentar dormir, o que faço depois de uma hora de choro mudo, tendo apenas minha rede como confidente e testemunha dessa dor. É quando prometo a mim mesmo nunca mais me apaixonar e me vingar do Sr. Oscar quando crescesse.

Nesse mesmo ano mudamos pra Fortaleza, Ferreirinha ficou em Tabuleiro juntamente com minhas lembranças. Passei a ajudar meu pai na marcenaria do seu Chico Medeiros, ganhava uns trocados pro cinema no final de semana. Com quinze anos, tinha crescido em altura, mas não em peso. Isso me rendeu o apelido de galo magro dado por um colega de classe da sétima serie no Piamarta da Aguanambi. Começo a me aperfeiçoar na arte da marcenaria, então aparece a oportunidade de ir a Tabuleiro, pois precisava consertar o histórico escolar, o que trouxe pra fazer a matricula faltava um carimbo com a assinatura da diretora. Depois de colocar o carimbo e assinatura no histórico, saí à procura de algo pra merendar, vou parar na praça e vejo que lá no pavilhão vendem lanches, sento num dos bancos peço um cachorro quente com suco de tamarindo, foi aí que veia a lembrança do cascudo que levei do seu Oscar e me vem toda aquela raiva que senti no momento do fato ocorrido, mesmo já passados uns cinco anos. Pensei que era o momento da vingança, perco a vontade de comer e pergunto ao rapaz que me serviu;

- Amigo, seu Oscar ainda é o dono disso aqui?

Responde o rapaz.

- É sim, ele está lá dentro fazendo uns pasteis.

- Você pode dizer pra ele que tem aqui um velho conhecido que gostaria de vê-lo?

O rapaz entra e volta com um senhor magrinho, careca e de óculos, bem mais baixo que eu. Olho aquela figura raquítica e minha raiva vai se diluindo, ele me olha como se quisesse me reconhecer e pergunta do que se trata.

Respondo;

- Estou procurando uma pessoa que me deu um cascudo alguns anos atrás.

Ele me pergunta;

- Qual o nome dessa pessoa?

Respondo;

- Ferreirinha...

Ele me diz candidamente;

- Meu filho, acho melhor deixar isso de lado, esse sujeito não vale a pena.

Se despede e volta pros seus afazeres.

Peço a conta ao rapaz. Pago. Antes de sair pergunto;

- Onde posso encontrar esse Ferreirinha?

Ele responde;

- Ele vive jogando bilhar no bar de Sinval.

E apontando diz;

- Aquele ali da esquina, mas não tá aqui quem falou.

Sorrio pro rapaz e vou pro bar ver se encontro o Ferreirinha e minhas lembranças...