o gemido da carreta &+
AMORES ESQUECIDOS I -- 3/1/2018
"Só se esquece de um amor por outro amor",
diz o ditado, ao contrário de Neruda,
que a tal primeiro amor em verso escuda,
como perpétuo a conservar o seu calor...
Do mesmo modo, a infância tem odor
que permanece nas narinas, uma aguda
memória, a que qualquer perfume ajuda
e quanta coisa se ajunta a tal olor!...
Faz o perfume recordar qualquer visão,
a própria luz em anterior coloração,
as sensações que então nos trouxe o frio,
o sabor nas papilas, em que estão,
mais do que doces, o azedo em desafio
e de uma vespa, a picada de ocasião!
AMORES ESQUECIDOS II
É impossível se olvidar as sensações
que a memória iniciaram nesse então;
tábula rasa nesse tempo o coração,
fundos os cofres dos iniciais pendões.
Até recordas do perfume dos balões
que ante teus olhos te encheram de paixão;
fica a lembrança de tal coloração,
fica o estouro gravado nos pulmões!
Ou daquele brinquedinho de magia,
que por detrás de uma cadeira se escondia,
nos meandros a que a corda o conduzia!
Ou aquele doce que na língua derretia,
do rádio ou algum piano a melodia,
ou os beijos que nas faces se sentia!
AMORES ESQUECIDOS III
Assim, de fato, o vero amor nunca se esquece,
igual que se recorda a humilhação,
qualquer vergonha ou castigo sem perdão
ou as sentenças decoradas de uma prece.
Mas no momento em que novo amor nos desce
e banha em calda nosso coração,
não se renova do velho amor a brotação,
que o novo amor as tristezas nos aquece...
Não é que morra de fato o amor antigo,
se bem nos traga novo amor felicidade,
se o amor recente nos for correspondido,
mas o buquê se deposita no jazigo
do arcano amor, até contra a vontade,
em memorial desse tempo já perdido.
ÁGUAS CALMAS I -- 4/1/2018
"As águas calmas são mais perigosas,"
eis um conselho a que pouco se atende;
com más palavras até mesmo se ofende
quem nos exprime tais palavras cautelosas.
Não é de fato que em torrentes caudalosas
menor perigo para nós se prende,
mas facilmente o atrevimento rende,
ao ver que trazem forças poderosas.
Dificilmente se as buscará enfrentar,
quando ainda temos mínima experiência,
até os troncos que arrastam se assistindo.
Mas há um remanso bem perto do lugar
que nos parece não possuir grande potência,
tranquilas águas nesse banho lindo!...
ÁGUAS CALMAS II
Mas com frequência, a água é mais profunda
do que se espera, junto da ribeira,
que até desce, de repente, a ribanceira
ou se encontra no sopé um lodo imundo.
Ou é de areia límpida, mas é fundo
esse estrato sem firmeza e bem traiçoeira
a bela água, transparente e lisonjeira,
que não dá pé, de fato. E num segundo
vê-se o incauto puxado para baixo,
coisa comum também na beira-mar,
quando ondas mansas chegam a bailar,
mas de repente, o pé perde o encaixo
e já o refluxo arrasta o infeliz
que ouvidos moucos deu ao que se diz!
ÁGUAS CALMAS III
Pois isto ocorre também na sociedade,
em que evitamos lugares de má fama
e aquele amigo a quem fiel se chama
é quem nos trai, tendo oportunidade.
E é nessas ruas calmas, bem verdade,
que um veículo sem buzina que o proclama
de repente envereda, numa trama,
sem controlar a sua velocidade.
E o mesmo ocorre com nossa esperança,
a feiticeira verde e lisonjeira,
por quem deixamos de lado a precaução,
pois não é sempre que se espera que se alcança,
mas essa calmaria é bem traiçoeira
e causa mal maior que a agitação...
MUITOS AMIGOS I -- 5/1/2018
"Quem é amigo de todos, na verdade,
não o é de ninguém." Busca somente
a melhor situação que se apresente
para proveito tirar dessa amizade.
Muita gente se apresenta, sem maldade,
como sendo tua amiga, realmente,
porém de fato é tão só indiferente
ao mal que te possa advir da sociedade.
E nem ao menos será um ser malvado;
é apenas egoísta e pensa em si,
cada amigo a servir-lhe de degrau;
mas é bom que seja sempre bem tratado,
sem que confies nesse bem-te-vi,
que para si somente busca um vau.
MUITOS AMIGOS II
Não é em vão que se proclama o dente
como aquele que somente a ti ajuda
e a ninguém mais, por demasiado aguda
necessidade tenha tal vivente!...
Claro que é algum dos odontos impaciente
e te morde a bochecha em talha ruda
e nesse caso, não existe quem te acuda,
se o próprio dente te for malevolente!
Mas é difícil que mesmo um desdentado
se disponha a engolir o mastigado
nos carinhos de tua língua e tua gengiva!
Nem com um beijo frequente acostumado,
um certo nojo existe, que se ativa,
se um tal alvitre lhe for apresentado!...
MUITOS AMIGOS III
É só amigo de si mesmo quem afirma
amigo ser de todos, ainda que
haja de fato algum de quem se vê
que como amigo de muitos se confirma.
Will Rogers, o cowboy da antiga firma,
seu laço a manejar qual bilboquê,
costumava dizer, ou assim se lê,
"Nunca encontrei alguém," -- nisso reafirma,
"de quem eu não gostasse." Homem valente!
Especialmente se lembrarmos que, frequente,
se encontraria com gangsters e bandidos!
Mas uma coisa é gostar, naturalmente,
e outra ver-se sacrifícios, concedidos
pelo bravo vaqueiro a tanta gente!...
SENHOR DE TUDO I -- 6/1/2018
"Senhor, só há um e está no céu."
E por certo Ele o é de todos nós.
Senhorias requeriam-nos os avós,
nesse respeito que hoje segue ao léu.
Mas convencido aqui existe "pra dedéu".
Há empertigados, qual que nos seus cós
das calças amarrassem com bons nós
alguma tábua, melhor servindo a fogaréu!
Nem é de fato que sejam só egoístas
ou de indiferenças por demais deliberadas;
mas a inteligência é neles limitada,
sem qualquer sensibilidade a lhes dar pistas
dessas pequenas crueldades praticadas
a qualquer um que cruze por suas vistas...
SENHOR DE TUDO II
Procuram ser, certamente, populares,
por mais que julguem serem importantes:
"Não sou "senhor", use "você", igual que dantes,
falam eles... ou usam frases similares.
Mas na verdade, são falsos seus olhares,
sem que deem importância aos circunstantes,
por submissão alheia delirantes,
buscam no mundo só interesses singulares.
Quando de fato, só recusam "senhoria",
porque respeito de fato não indica
e muito menos a "Excelência" autoritária
com que deputado ao colega xingaria,
ou senador contra o colega "intica"
e no Supremo tal ofensa é até diária!...
SENHOR DE TUDO Iii
Não obstante, no Céu está o Senhor,
muito acima de qualquer autoridade,
a Senhoria a demonstrar nossa humildade,
que cada um se curve em Seu louvor!
Seu Santo Nome respeitando com amor,
sem nunca em vão O tomar pela cidade;
mesmo em igreja, repeti-Lo é uma vaidade
que se devia evitar com certo ardor...
Os Céus e a Terra estão cheios de Sua glória,
como escrito se encontra no Evangelho
e até mesmo quem nutrir mínima fé
o Seu Poder reconheça pela história:
tudo fez bem -- somos nós rachado espelho,
mas Senhor nosso Ele por certo o é.
O Gemido da Carroça 1-- 7/1/2018
"O boi é que sofre, mas a carroça geme!"
E quanto sofre, às vezes o animal!
Não tem descanso sequer no Carnaval.
Ao ver o sol raiar, o esforço teme...
Para o trabalho funciona como leme,
Dele cortada a potência semental,
Músculos crescem, trabalho não braçal,
Porém "patal", na carga que o condene...
O boi somente arfa ao respirar
E como o burro, quase não se queixa,
Do carroção só as rodas a gemer
Pela carga de que precisam suportar,
Se bem sozinho o carro não se mexa,
De fato o eixo a lhe dar todo o poder.
O Gemido da Carroça 2
Há muita gente pelo mundo assim,
A se queixar das cargas mais pequenas,
Mas seu esforço pouco ajuda; é apenas
A força doutrem que as carrega enfim.
Colaboração se reconheça, no outrossim,
Mas nunca ouvi queixar-se as açucenas,
Sendo os talos que suportam suas empenas,
Tampouco queixa-se a raiz que está no fim.
Mas para o solo a flor a fronde pende,
Sem equilíbrio fornecer ao cabo...
Quiçá se queixe o chocalho da serpente,
Embora a força esteja nos coleios...
Talvez se queixe do cachorro o rabo,
Embora a espinha ative seus meneios...
O Gemido da Carroça 3
Mas há quem traga à casa seu sustento
E apenas queixas escute no chegar...
Inversamente, há quem na casa trabalhar,
E busque o outro só divertimento...
A coisa é certa: o vento traz lamento,
Mas é a chuva que vem fertilizar
E é bem mais, igual que o vento, se queixar
Quem menos sofre de padecimento...
Gira o badalo, porém o sino geme,
O sapato se desgasta e dói no pé,
A mente estuda, mas se cansa o olhar,
O barco voga, porem range o leme,
Corre o crioulo altaneiro, sem dar fé,
Mas o ginete vai das costas se queixar!
O Gemido da Carroça 4
Assim bem mais se queixa um comensal
Do que quem lhe preparou a refeição;
Gostos de muitos caprichosos são:
Causou a comida um gás intestinal!...
Mastigação é um trabalho perenal,
Longo cansaço lhe provoca a digestão
E nem sequer oferecem dar a mão
Para lavar os pratos no final!...
Falando sério... Nem é por ingratidão,
Mas só por falta de sensibilidade,
Só se interessam por seu próprio mundo.
O centro esta no ranger do carroção,
Que marcha o boi com longanimidade,
Enquanto a carga dorme em dom profundo.
O Gemido da Carroça 5
Você também conhece gente assim,
Que de explorá-la se acha no direito;
Seu bem-estar está ao deles sujeito
E a Colombina servir deve ao Arlequim...
De quem zombou queixar vai-se o pasquim,
Da acolhida a reclamar quem foi aceito,
Queixa-se o hóspede de seu duro leito,
Vai a bexiga protestando contra o rim...
O ordenhador a lamentar que é dura a teta,
O caçador contra o cansaço da caçada,
O anzol a reclamar ser gordo o peixe...
O espertalhão fala do esforço de sua treta,
Parente pobre se julga injustiçado
E o sem-terra até quer que a enxada o deixe...
O Gemido da Carroça 6
O "encostado" a reclamar de sua pensão,
A filha egoísta por ter menos que queria,
O padre que as coletas maldizia
E mesmo o gato querendo mais ração!
Por ser preso a chorar qualquer ladrão,
O advogado que cobrar demais queria
Por um trabalho que qualquer outro faria,
Sem precisar praticar a profissão!
Processando por direitos o peão
Que na fazenda menos trabalhou;
Resmungando dos doentes a enfermeira!
De tantos mais terás recordação,
Se foste o boi que o carroção puxou
E não as rodas a queixar-se da canseira!
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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