Minha vida estudantil foi um tanto controversa. Cheguei à escola para fazer a matrícula sem saber em que curso técnico me inscreveria. Olhei a enorme lista afixada à frente e fiz "unidunite". Dias depois, lá estava eu no Curso Técnico em Contabilidade sem ter a menor ideia de como seria a minha vida profissional.
     O professor de Contabilidade geral parecia com a personagem daquele  famoso filme : - Óbvio! Alguns sabem à que personagem me refiro. Óbvio!
E entre tantos livros contabéis preenchidos manualmente, empresas fictícias, trabalhos em grupos e minha matemática no limite, já que nunca aprendi matemática: pasmem! Minha vida no colégio técnico foi se desenhando de maneira inesperada e até prazerosa em alguns momentos.
     O tempo foi passando, chegou a hora do estágio. Naquela época, existiam instituições especializadas nesse assunto como a antiga Fundação Mudes, CIEE entre outras. Inscrevi-me quase que obrigatoriamente para uma dessas seleções e deixei o barco correr. Uns dois meses depois, chegou o recado através de uma vizinha que dizia para eu comparecer no endereço "tal" para uma entrevista. Nem liguei. Mais uma semana se passou e a vizinha mais uma vez foi até a minha casa levar o recado que a "tal empresa" tinha ligado novamente para eu fazer a entrevista. Não liguei coisa nenhuma. Eu hein. tinha apenas 17 anos e não queria ir para o Centro do RJ trabalhar num escritório de contabilidade de jeito nenhum.
     Pela terceira vez, a empresa ligou para a vizinha - já que não era fácil ter telefone fixo naquela época - e ela levou o recado mais uma vez. Aí cansei dessa ladainha e fui ao orelhão telefonar para quem queria me importunar.      Entrevista amanhã às 8h no Castelo - Centro do RJ.
    No dia seguinte, combinei com um amigo de turma que também ia fazer uma entrevista para estágio no Centro do RJ e fui até o local fazer a entrevista. Cheguei no horário marcado, mas a entrevistadora apareceu pelo menos duas horas depois. Eu já tinha em mente que aquilo não era para mim. O que eu estava fazendo naquele lugar cheio de carpetes, recepção cheia de pompa e funcionários circulando de um lado para o outro com aquele cheiro de papel velho no ar.
     Foi quando o "plim" do elevador soou e a entrevistadora, uma senhora, lá pelos seus sessenta e poucos anos, saiu esvoaçante com seus cabelos vermelhos tom Pica-pau e bateu a porta de sua sala. Minutos depois, a recepcionista me chamou e indicou-me a sala para a entrevista. Deparei-me com uma pilha de fichas dos entrevistados anteriores, uma máquina de escrever antiga, armários, um ar-condicionado e paredes amareladas. Meu pensamento foi: o que estou fazendo aqui? bem que meu pai havia dito para não vir porque eu seria capaz de abandonar os estudos. Bem... a entrevista não foi nada do que poderia ser nos dias atuais. Não levei muita fé no que estava acontecendo, já que as perguntas foram do tipo se eu morava com meus pais, se tinha namorado, filhos, irmãos, em que ano do colégio estava. Aquilo não era padrão - pelo menos na minha cabeça - de entrevista. Isso só podia ser brincadeira. Por fim, fiz um teste na velha máquina de escrever que mais adiante a chamaria de Jurema.
     Fui para casa.
    Exatamente um mês depois, novamente a "tal empresa" ligou para a minha vizinha (coitada da minha vizinha) pedindo para que eu entrasse em contato. Lá fui eu mais uma vez ao orelhão e fiquei sabendo que tinha sido selecionada para o estágio.
      Comecei no dia seguinte.
     Dirigi-me à empresa para iniciar o estágio às 8h da manhã. Olhei para o local de entrada e estava fechado. Isso por volta das 7h30 da manhã. O tempo foi passando e o local da entrada continuava fechado. Meu Deus, a empresa fechou de um dia para o outro e, dessa vez, a vizinha não me deu o recado. Fiquei por varios minutos esperando a empresa abrir e nada. Depois de muito tempo de espera e angústia, percebi que estava olhando para a entrada errada. Ora, ora... a entrada era ao lado. Começava assim um dos meus primeiros gafes rumo à contabilidade.
     Subi esbaforida pelo elevador até o décimo segundo andar e cheguei à sala de trabalho. Havia alguns papéis de sindicatos para serem digitados e esqueci-me de contar, eu só conseguia digitar com os dedos indicadores mesmo tendo feito o curso de datilografia.
     Havia sobre a mesa um telefone imenso cheio de botões. Aqueles aparelhos tinham uma central por onde as ligações chegavam à recepção; a funcionária de lá distribuía as ligações de acordo com os ramais. Eu nem sabia que tinha um ramal. Enquanto datilografava na velha Jurema (minha parceira de anos) na velocidade de uma tartaruga, escutei a voz da recepcionista indicando a ligação no ramal dois. Dei um pulo da cadeira como quem participava de uma aula de JUMP. Aquela voz da moça da recepção me parecia o som de um alien saindo de dentro das paredes, do teto, do ar-condicionado. Eu não conseguia identificar de onde vinha aquela voz. - Fulana ligação linha dois!  como num filme de terror, como uma piada sem graça, comecei a gritar para o ar: - Alô, oi, alô, fala comigo, estou aqui!
     - Fulana, ligação linha dois!  enquanto isso, eu estava no meio da sala gritando com as paredes na intenção de ser ouvida. Foi quando a funcionária perdeu a paciência e foi até a minha sala informar que bastava eu apertar o botão que piscava do telefone e falar com a pessoa que aguardava na ligação. Era a minha chefe. Que vergonha!
     Os dias foram passando e o susto inicial também. Era preciso sair de casa por volta das 5h da manhã para enfrentar filas intermináveis do ônibus. Isso porque naquela época, havia o "guarda-lugares". Esse aí era aquele tipo de pessoa que chegava cedo na fila de ônibus para guardar o lugar de mais dez pessoas na frente dele. Era um tormento. Até o dia em que um homem sacou a arma na fila e gritou: - ninguém vai mais entrar na minha frente não! Foi correria para todo lado e eu me vi parada com o guarda-chuva escondendo a minha cabeça.
     Os meses foram se passando e eu na qualidade de estagiária... era a "faz tudo". Todo mundo sabia que o estagiário era aquele ser extraordinário destinado a fazer tudo. Tudo aquilo que não estava previsto nas tarefas da empresa, o "ser das estrelas" fazia. E eu era uma dessas pessoas. Rodava igual pião desgovernado, fazia serviço de office girl para o chefe. Ah...esse não era a senhora cabelo pica-pau. Esse era o chefe geral. Já vamos falar dele.
     Eu comprava balas de tamarindo. Cerca de umas trinta por dia para a minha chefe cabelo vermelho e fumava passivamente toda a fumaça que ela exalava de seu cigarro diário. Havia um contador, na sala ao lado, que se esquivava em apenas me dar bom dia pela porta da minha sala e falava sempre para eu não sorrir, pois os dentes ficariam amarelados. Fizemos amizade. Eu, por ter uma caracteristica física de olhos puxados, esse mesmo contador me fez a gentileza de me apelidar de TANAKA. Bastou chamar-me uma única vez pelos corredores por esse mesmo apelido e toda a empresa se apropriou dele: - Tanaka, você parece um cigarro ambulante! Meu Deus, Tanaka! Como você aguenta ficar tanto tempo trancada naquela sala ouvindo a chupada de balas de tamarindo com aquela cortina de fumaça?
     Eu não tinha o que fazer. Não é, caro leitor? eu tinha dezessete anos, primeiro estágio, precisava do meu diploma. Apesar de no inicio ter achado que aquilo não era para mim, com o tempo fui percebendo que tudo ia fazendo sentido.
     Vamos voltar e falar do chefe geral. Aff! O chefe/contador geral era rabugento pra cacete. Desculpe-me os termos, mas não tenho outro adjetivo mais ameno para descrevê-lo. Ele era aquela pessoa do tipo mal-educado, desbocado e blá, blá, blá. possuia um bigode para esconder os cacos de dentes que tinha. Não dava um sorriso. Também...pudera! Quando espirrava, não ficava um ser vivo ao seu redor. Mau hálito puro! 
     Numa empresa composta por oitenta por cento de mulheres, ele deitava e rolava. Bastava dar um grito que a mulherada saía tremendo e chorando pelos corredores do estabelecimento. Sem falar que ele era diariamente influenciado pela víbora. A vibora, era a amante dele.
     Ela o infernizava de um jeito peculiar. Ia minando tudo quanto era informação dos colegas de trabalho e despejava seu veneno em modo conta-gotas no ouvido do rabugento. Eu mesma, por exemplo, já levei uma bronca dele no elevador cheio de pessoas desconhecidas. Nem eu sabia o porquê. Simplesmente Levei. Logo me deu vontade de chorar. E a Víbora ao lado só observando.
     Engoli a seco meu esporro, tentei entender o que não era compreensivel e segui a vida. O período de estágio acabou e o chefe rabugento me contratou. Deixei de ser estagiária e passei a ter a carteira assinada. A essa altura da vida, já com dezoito anos,  já tinha o controle de cerca de muitos funcionários, dominava a folha de pagamento e toda a tecnologia que ia surgindo com o tempo. Pasmem, leitores. O chefe rabugento foi ficando obsoleto e cada vez que uma informação nova surgia, uma nova tecnologia e o avanço da internet, lá estava eu disposta a aprender. A matemática que eu não sabia na escola, fui aprendendo dia após dia. E a rabugisse dele foi aumentando e se desleixando na mesma medida que o cabelo vermelho também ia se distanciando.