AS ETIQUETAS AO MORTO VIP

Foi-se o tempo em que morrer gerava comoção pessoal, familiar ou mundial.

Refiro-me à tristeza aos padrões de antigamente, os de se arrancar os cabelos aos gritos, fazer luto, morrer junto com o morto. Quê?

O mundo mudou nisso também, saibam.

Sinto que parece que, hoje, mesmo o morto mais ilustre, atrapalha o tempo "útil" para as festas dos vivos.

Mas claro, esse probleminha já foi solucionado, inclusive com requinte das empresas especializadas em fazer o tudo correr nos conformes da etiqueta do "se morrer" com classe e sem se preocupar com os detalhes:a ocorrência já é uma festa!

-Viva o morto!

Explico: Morrer , na modernidade, já é motivo para mais uma "glamourização" da vida e se, por desventura do defunto ele for VIP, saibam, o mundo chique requer etiquetas "fashions" para o glamouroso despacho.

Sem desculpas de se pisar nas regras do tal chiquê nobre!

Assim, hoje há "super-mega- master " e grandes eventos em palácios, cujos custos sempre serão pagos com o dinheiro do defunto, embora curiosamente, nunca será a tal festa do morto para o morto, que jamais dela participa. Muito injusto isso!

Fica ele ali, no máximo como um móvel na mesa do centro...ou do canto do nobre salão, para não atrapalhar o fluxo da festança.

Apenas, inerte, a contempla a "ex -vida" estupefato, perplexo com o glamour do qual AINDA se faz merecedor.

Morrer "chiquetosamente", então, hoje em dia não é nada assim, digamos, tão fora do corriqueiro. Todo o mundo mortal pode!

Você pode até escolher e financiar antes...até a chegada do grande e espetaculoso dia que nunca se sabe qual será.

É aí que mora a grande emoção da encomenda da festa e da tração das vendas.

E eu penso que é porque todo o "mundo morto", por Direito Humano legítimo, deveria correr o risco de ao menos ter a festa, ainda que seja ela tipo: pagar o tal mico protagonizado pelos vivos.

Tem, inclusive, que ter "selfies" mil, sempre filtradas, disparadas nas redes, com "caras e bocas famosas"...para se registrar o mega acontecimento que morto chique algum acreditaria, tampouco concordaria se soubesse como é.

Assim, antes de contar meu causo atual, reintroduzo minha crônica recontando um fato que me encafifava quando eu ainda era muito criança, por volta dos meus sete anos de idade:num cemitério duma pequenina cidade do interior, havia covas simples e grandes jazigos, como mansões.

Aquilo me intrigava demais.

As casas dos mortos eram lindas..."por que será?"- eu me perguntava com meus botões de criança curiosa.

Certa vez perguntei por que ali era tudo tão diferente nas acomodações "pós-vida" e obtive a resposta de que os jazigos eram das pessoas "muito importantes".

Nunca me responderam à pergunta que fiz imediatamente e continuo fazendo: "mas se eram tão importantes...por que morreram?"

Constato: nadinha mudou quando o assunto é defuntos!

Atualmente não parei de me intrigar com a moda dos velórios da modernidade, que correm mais ou menos assim para os super VIPs Homens dessa Terra:

Então, você é convidado para o que sente ser um triste acontecimento, vai lacrimejando e dirigindo seu automóvel até ao local,num trânsito urbano dos infernos da vida, paga seu estacionamento bem longe do evento e logo na entrada do grande recinto alguém lhe pergunta:"Madame, as chaves por favor, posso manobrar seu automóvel?"

Daí você, discretamente, percebe que as coisas mudaram e responde:"obrigada senhor, cheguei de Uber", já se perguntando se fugiu das etiquetas comportamentais a estar prestes de pagar um discreto mico de vivo.

Logo na entrada, sob uma sinfonia de música clássica, serve-se o coquetel que você nunca sabe se é de despedida do VIP morto ou de recepção dos "vips?" vivos.

As orquídeas tons pastéis caem em chuva sobre o todo como se fosse

você " a noiva" do evento.

E a festa segue no desfile dos convidados e dos garçons impecáveis nos seus "smokings": chega até se rum competição desleal com o protagonista da festa: o defunto.

Daí, sem querer, você estica os ouvidos para os cochichos em comentários inacreditáveis sobre o todo:

"você viu aquele espumante, que delícia? Será que vão servir mais?"

ou ainda:"Você viu a maquiagem da fulana, onde já se viu uma cor de batom daquela num velório desse porte?"E o perfume da fulana você sentiu? Último lançamento da Chanel, "chiquetésimo e caréssimo"...mas não apropriado para esse evento"

"E o novo marido da ciclana, que gato, você notou? Bem mais novo que ela, passou reto, nem um sorriso na minha direção e ainda se acha um grande Vip..."

"Você gostou daquela casquinha de Siri com ovas de Salmão... não achou que erraram no vinho? "Você sabe que o "Chef do Buffet" é aquele que apareceu no mais recente programa badalado da fulana e ganhou o prêmio master?"E a prataria? aquele cálice precisava dum brilho mais caprichado..."

Já as coroas de homenagens têm que ser chiques discretas e sem perfume porque morto chique mesmo não pode nos despertar a posterior memória olfativa: flores exóticas em tons nada convencionais e com poucos dizeres em português arcaico. Jamais "saudades de..."; afinal, convenhamos, seria meio fora do tom da alegre festa da despedida, eu acho.

E o morto lá, impassível e invisível, pagando todas as contas e todos os micos.

Até que chega a hora em que a música muda de tom, só sugerindo um profundo lamento e alguém anuncia a reza ecumênica de praxe, a de rapidíssima encomenda antes d e torrar o defunto.

Sim porque defunto chique nunca se enterra hoje em dia...só se recicla.

Relato que : Não se vê uma lágrima sequer por debaixo das lentes escuras dos últimos modelos PRADA tão ali ostentadas nas metafóricas armações de padronagem dos TANTOS "amigos oncinhas".

No máximo, com muita sorte do morto, a gente ouve: "tadinho dele, era tão bom...não merecia isso..." ou ainda: "como está linda...parece que dorme... "

E aí, é melhor sair de perto sob o imediato risco de se sair na "selfie" -mas tipo fundo de tela!-com o defunto.

-Cruzes!

Essa a única hora, a do despacho, que todos olham para o relógio dos compromissos mil e se lembram, na marra, de que alguém finalmente morreu, que não há mais tempo a perder porque a vida segue lá fora.

Glória!!! Hora de ir embora. Tanto os vivos e principalmente o morto.

Digo que aquele ser homenageado sem nunca ali o ter sido, foi o único ser, mesmo já não sendo, que eu senti ser, na sua ida-juro!-deveras "Humano", só por ter ficado em auto e absoluto silêncio sepulcral em suas próprias homenagem e consideração.

O tal do silêncio que até na morte, aprendi, vale ouro..MAS OURO VIP.

Ali, bem na hora de voltar às cinzas, senti que decerto o defunto consigo desabafaria baixinho:

"uffa!, que alivio, ainda com todo o custo da festança no meu bolso, o de não mais pertencer a esse tão Vip e pequeno mundo dos grandes cada vez menores".

E então, lá se foi ele rumo ao mistério mais confortável dos mortos e rogando ter feito tudo certinho para não ter que para aqui voltar...e pagar mais contas impagáveis inclusive as que fizeram em seu nome!

se voltasse já estaria em dívidas altas!

Então, senti que já estava no lucro só de ir.

Do que deduzi dessa experiência de se morrer " vipmente" hoje em dia: Sim minha gente, pode ser sim uma festança inesquecível e supimpa...ao menos para os VIPs defuntos!

Todavia, depois do que ali vi e aprendi, quero mais do que nunca quis, é passar despercebida nessa vida (e na outra") e principalmente pelo tal mico da morte.

Não quero nem pensar em correr esse micoso e oneroso risco!

Saí de lá em oração verdadeira, por mim e pelo "de cujos" e mais que decidida: eu, mesmo se pudesse, jamais quereria aquilo para mim, tenham toda a certeza não VIP desse mundo e do outro também!

Mas nem pagando...nem a grande conta de consumo dos VIPs vivos tampouco o grande mico de consumação dos VIPs mortos.

De fato, é como dizem por aí:

"a gente morre e não vê tudo..."