O dia em que eu trancafiei minha paixonite.

Lembro-me como se fosse hoje, na aurora das 4:40 da manhã, no caminho da padaria. Tinha meus 12 anos e, como todo garoto bobo dessa idade, era crente da pureza feminina e se apaixonava todo dia por uma noviça diferente. Uma em particular, minha vizinha, tinha um lugar espaçoso no meu coração ingênuo. Ela devia ter uns 11 anos, se bem me lembro. Reservada, dona de uma beleza puritana ilibada e rainha inconsciente da minha imaginação, Elisa era o seu nome.

Eu já tinha manufaturado mil formas diferentes de puxar um assunto com ela, mas eu nunca tive nenhum sinal, um "Bom Dia, Blosson!" ou olhar de curiosidade, que desse cabo a minha covardia. Fui empurrando minha angústia por meses e, para minha sorte, neste hiato não brotou concorrência pelo coração da minha donzela (isso não significa que eu não me atormentasse todas as noites pensando na possibilidade de ela estar apaixonada por um saltimbanco desconhecido).

Enfim, chegou o fim de ano e, como é comum nessas épocas, eu tive uma breve retrospectiva mental dos meus feitos e, principalmente, da minha maior omissão. Dessa vez não suportei, a angústia me atropelou como um caminhão.

"Ai! você anotou a placa?"

"Sim, sim! Vamos fazer o B.O, veja!"

"C 0 V 4 R D 3"

Era admitir a derrota e viver com a ignominia lamuriosa ou dar meu sangue na luta. Resoluto da segunda opção, parti para a batalha. Era virada de ano e minha mãe iria visitar a família dela mais tarde, ótimo e inocente pretexto. Chegamos lá as duas da madrugada e eu encontrei ela conversando com duas amigas no sofá, o que me fez desistir de corpo e alma dessa batalha, não era pro meu bico.

"Tudo bem ela debochar de mim, mas debochar de mim pra suas amigas? Jamais."

Engoli meu orgulho durante aquela noite, mas a covardia me mordeu pelo resto da semana. Eu não suportava mais. Antes eu gostava de observa-la, de imaginar estórias com ela, de conjecturar sobre o que falaria pra ela num eventual encontro, essas coisas; agora, evitava-a a todo custo, tanto vê-la como pensa-la. Doía-me o coração, lembrar dela era lembrar que sou um covarde e, pior, que algum corajoso vai roubar meu sonho de porcelana.

Convicto da minha derrota, comecei a me conformar, até o maldito primeiro domingo de 2011. Quase todos os dias eu saia bem cedo para comprar o pão e, inevitavelmente, passava pela casa dela. A casa sempre estava fechada, eles não pareciam ter o costume de se levantar cedo, mas neste domingo foi diferente. Quando passei em frente e olhei por costume para a área dela, gelei. Lá estava ela, sentada na rede e lendo alguma coisa no seu caderno do colégio. No mesmo momento ela notou minha presença, deve ter visto minha cara de bobo e fixou aqueles olhos claros na minha fisionomia de palhaço, ai rapaziada, ai foi fatal...

Não sei o que me deu, mas eu precisava me comunicar com ela, e tinha que ser mais que um "Bom dia". Toda minha covardia sumiu, eu mesmo sumi, só o que existia naquele momento era ela e a oportunidade, nada mais. Cada célula da minha massa cinzenta se aglutinou para um só fim, acredito mesmo que parei os pulmões e o coração para pensar melhor. O resultado foi um rápido pulo para o portão dela e "Crack!", fechei o cadeado de sua casa.

"E-está muito perigoso aqui esses últimos tempos... Não pode dar mole, sabe... Teve dois assaltos ontem e..."

Ela definitivamente tirou os olhos do caderno, sua boca abriu lentamente, estava estupefata.

"O que você... fez?"

Tão rápido quanto me agarrei ao portão, saltei pra longe dele. Um frio subiu do colo do estomago pro corpo todo, minhas pernas tremeram, não conseguia pensar em nada, eu era uma galinha novamente; um composto de covardias vestido de gente.

Ela foi até o cadeado, franziu o cenho e lentamente levantou os olhos pra mim, dizendo:

"Você... você não fez isso."

Engoli em seco enquanto suava frio.

"MINHA MÃE FOI AO TRABALHO, VOCÊ ME PRENDEU AQUI DENTRO! NÓS SÓ TEMOS UMA CHAVE E ESTÁ COM ELA, VOCÊ É IDIOTA? EU TENHO PROVA, SABIA? O QUE VOCÊ TEM?!"

Eu apenas corri. Queria chorar, mas não pelo que fiz, eu realmente ainda não tinha me dado conta. Eu só sabia que por algum motivo eu tinha a irritado profundamente, dando a ultima pá de terra pras esperanças que reguei sozinho. Chegando na esquina, onde eu virava para a padaria, voltei-me para trás e vi que tinha um velho, vizinho meu do qual não tinha muito contato, falando com ela.

"EI, SEU CABRA SAFADO, VOCÊ NÃO TEM MAIS O QUE FAZER NÃO?!"

Depois desse grito, um zunido passou pelo meu ouvido, eu estava prestes a desmaiar de nervoso. O desespero foi tão grande que esqueci mesmo do pão. Passei um bom tempo sentado no terminal de ônibus ali perto, com a cabeça apoiada nas mãos. Eu queria apenas chorar, mas tinha vergonha demais de chorar na rua, solucei, suei mais, quis vomitar, enfim.

Voltei pra casa com o pretexto de que tinha passado mal no meio do caminho e por lá fiquei. A estória não chegou aos ouvidos da minha mãe, mas a garotada do bairro inteira soube da minha corajosa atitude, o que me rendeu o apelido de "Carcereiro".

Chorei meu arrependimento pelo menos uma vez por mês durante o restante do ano e mesmo assim o remorso desta burrice nunca se desinfetou por completo. É como um diploma de burrice que carrego comigo para justificar meu ócio. Toda vez que penso em empreender em algo, lembro desse fato e penso "Uma pessoa como eu simplesmente não é capaz."