Questão de gênero

Depois de uma manhã tranquila e serena, dona Matilde serviu o almoço com um sorriso nos lábios que até o marido questionou:

_ o que foi criatura?

Ela sem titubear respondeu:

_ Nada... sabe aquele dia que você amanhece tão feliz que ninguém e nada no mundo vai te aborrecer? Pois é... esse dia é o meu.

A tarde se espreitou no batente da janela e como que de supetão a mamãe feliz escutou uma voz estridente.

_ Mãe, é hora da lição de casa.

Simplesmente ainda anestesiada pelo seu feliz dia ela respondeu.

_ Estou na sala querido, venha. Faremos aqui a lição.

Quando ela observou a agenda escolar de Pedro, tinha um aviso sublinhado de vermelho. “A lição de casa de hoje só pode ser feita com o pai e a mãe”. Juntos. Por sorte ou asar Beto, o pai estava de férias.

_ Beto, venha cá um momento, por favor! A lição de Pedrinho hoje tem que ser acompanhada por nós dois.

_ Nossa mãe! Que ano este menino está? Replicou ele.

_ Maternal II querido.

_ E precisa de nós dois para fazer o quê afinal?

_ Aqui só diz para responder uma pergunta do Pedro e mais nada.

_ Ok... vamos lá, disse o pai todo afoito.

_ Pergunte o que quiser meu bem, decretou a mamãe toda orgulhosa.

Pedrinho no auge dos seus quase quatro aninhos de vida bradou com ânsia.

_ Mamãe, papai... o que é um... TRANSEXUAL?

_ Minha nossa! Desesperou Beto. De onde que este guri tirou isso. Vou processar esta escola. Não é possível que uma doida de uma professora está ensinando estas asneiras para uma criança de seis anos.

_ Quase quatro Beto. Se acalme querido. Vamos explicar.

_ Comece você então. Eu vim pronto para explicar como ele entrou na sua barriga e quando cheguei, ele me saltou ao dorso com uma pancada na nuca.

E lá se foi a aventura em família.

_ Querido. Disse a mãe, já com a expressão de certeza que não iria dar conta do recado. Transexual é... Explica aí Beto o que é ser homem.

_ Eita ferro, sobrou para mim! Bem. Sabe, eu e você somos homens porque nós temos um piu piu.

_ É o do desenho animado pai? Não! ...

_ É o pênis meu bem. Esse que você tem entre as perninhas e usa para fazer xixi. Enquanto que a mamãe tem uma... vulva.

_ Uma uva é mamãe?

_ Aff! Retrucou o pai. Eu simplifiquei demais, enquanto você sufocou o pobre com o dicionário Aurélio. É por onde a mamãe faz xixi e por onde você nasceu filho.

_ Ah pai. Isso eu já sei. Mamãe já me explicou isso tudinho.

_ Maravilha, e eu aqui perdendo tempo. Assoprou Beto.

_ Filho. É assim. Transexual é aquela que nasce menina e quer ser menino; que nasce menino e quer ser menina. É só trocar o pênis pela vagina.

_ Obá! Respondeu Pedro: mãe, eu posso trocar com Clarinha?

_ Não. Responderam os dois, na mais profunda harmonia.

O pobre menino se desmanchou em lágrimas, pois eles não queriam deixá-lo trocar com Clara sua priminha. Foi uma avalanche de promessas para conter o choro, que quase lhe deram o céu. Ao final, depois dos soluços, o filho consolado perguntou:

_ Quem pode fazer essa troca mamãe? Porque a senhora ficou zangada comigo? Eu não fiz nada de errado. Ou fiz?

Mamãe o afagou nos braços com toda ternura e com o coração aflito. Nesta altura já tinha ligado para várias pessoas pedindo ajuda, mas a resposta era sempre a mesma. Diga-lhe a verdade. Porque assim ele se sentirá livre. Mas livre de quê e de quem? Afinal o problema estava ali e deveriam enfrentá-lo. Depois de tanto mimo, o filho deveras consolado fez a seguinte proposta:

_ E se vocês dois virassem transexual? Ah! Vai mãe, troca com o papai...

_ Eu sabia que ia dar nessa. Sai dessa Beto. Sai dessa Matilde.

A mãe disse com amor àquele interlocutor tão jovem, mas tão ávido de resposta para questões próprias para adultos.

_ Mamãe responderá a sua pergunta, mas antes me diga onde foi, ou quem foi que te falou esta palavra.

_ Foi você mamãe.

_ Eu? Respondeu ela desnorteada. Quando?

_ Mãe, foi ontem. Papai disse que o mundo está todo cheio de veados e a senhora disse que o nome certo era transexual.

_ Minha nossa! E eu pensei que esta criaturinha estava dormindo. Pois é filho. Eu e o papai não podemos trocar de sexo. Erramos em usar o verbo trocar. Na verdade, são meninos e meninas que nascem com um sexo e ao se tornarem crescidos, descobrem que se sentem com outro gênero. Assim...

_ Ei... Bem. Ele dormiu.

_ Coitado! Será que ele agora está livre?

_ Do quê, respondeu o marido?

_ Eu te juro amor, que se você fizer outra pergunta difícil desta eu te mato. Boa noite.

_ Eu sabia que ia sobrar para mim. Libertado. Daqui a pouco ela me culpa também por conta... sei lá de que. Tudo agora tem trans. Até na economia. Olha aí a Transpetro. Danou-se. Agora entrei na política. Vou dormir. Senão terei um pesadelo e acordarei morto.

_ Boa noite.

Eugênio

03/08/2018

Eugênio Costa Mimoso
Enviado por Eugênio Costa Mimoso em 03/08/2018
Reeditado em 03/08/2018
Código do texto: T6408415
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