SEMANA SANTA NO SITIO CARITÉ (*)
Quando chegava a semana santa no Sítio Mulungu, localizado em Pequilândia, cidadezinha perdida nos cafundós do sertão nordestino, tudo se transformava em fé e devoção na encenação da Paixão de Cristo, no tablado improvisado num campinho de futebol no chão terra batida.
No dia da apresentação vinha gente das redondezas trazendo seus tamboretes para se acomodar melhor na fila do gargarejo. O acanhado campinho ficava repleto de expectadores espremidos, olhares apreensivos, compadecidos com o sofrimento do Cristo. Algumas Beatas histéricas, vestidas a cárater, chegavam às lágrimas acreditando ser o Cristo vivo em cena.
O papel do Cristo era confiado ao morador mais apessoado da região. Nas redondezas residia um ferreiro nascido lá pras bandas de São Paulo, conhecido por todos desde adolescente, que atendia pelo nome de Egidio. Era um sujeito alto, corpo atlético, cabelos loiros, olhos azuis, e fazia lembrar ligeiramente o Cristo americanizado que aparece nos seriados de TV e nos calendários distribuídos pelos bodegueiros aos fregueses no final de ano. O único problema, sem muita relevância, é que o Egidio era um péssimo ator, extremamente tímido, gago; não decorava o texto e falava para dentro- nem mesmo Maria, sua mãe, conseguia entender uma só palavra pronunciada pelo escalado galã quando ele entrava em cena de cara limpa. Para perder a timidez e pisar no tablado mais desenvolto, o ferreiro "ator" tinha de apelar para uns gorós, pelo menos umas 12 lapadas goela abaixo de uma cachaça fabricada em Viçosa, batizada de Queima Cueca. Aí ninguém segurava o ator! O galâ pulava em cena e de improviso se achava o próprio Cristo ressuscitado, apto a "obrar milagres", quando arrancava aos sopapos o paraplégico Zuzinha da cadeira de rodas, jogando-o degraus abaixo e gritando naquela histería alcoólica: "Levanta, Zuza! Levanta seu preguiçoso de uma figa, e anda". O Zuzinha, coitado, estatelado no chão, sem poder de reação alguma, gritava desesperado: "Me acuda, gente, me acuda! Esse Jesus destrambelhado vai me moer de pancadas". E o povão, compadecido, recolocava o Zuzinha na cadeira de rodas, que, agradecido, buscava se esconder entre os curiosos, saindo de cena furtivamente para bem longe do olhar atento do ator Egidio. Os figurantes eram escolhidos do meio do povo, muitos eram roceiros iletrados, alguns entusiastas acreditavam ser o chamado Divino participar da encenação.
E foi aí que entrou em cena, enfezado e virado no cão, o apóstolo Chiquinho, de Dona Zulmira. Arregaçou. as mangas e foi logo dizendo: "Seu Jesus, se o senhor ordenar, eu vou pegar esse Zuzinha filho de uma égua, dou uns tabefes nele e ele vai sair daqui correndo feito um jegue desembestado. Agora envergonhar o Senhor diante do povo, fugindo do seu milagre, isso não vai mesmo, eu garanto ao Senhor!".
(*)- Sitio Carité- Juazeiro do Norte-CE
Autor Benedito Morais de Carvalho (Benê)