UM MICO PARA CHAMAR DE SEU

Era meados da década de noventa quando fomos convidados para um evento empresarial de final de ano, entre casais amigos, numa casa noturna de Sampa, a Saint Paul.

Todos sabemos que, lá atrás, tempos não tão distantes assim mas que já podem virar seriado histórico na televisão, e a despeito da revolução sexual progressiva desde os anos sessenta, “o sonho de consumo oculto ” da mulherada da época era ter um marido para chamar de “seu”.

Ninguém assumia muito, mas era, e acredito que sempre será.

Esse pronome possessivo “SEU” era bem mais viável naquele tempo...

E não era apenas se ter um marido, não, imaginem!- a axiologia do momento subliminarmente nos imperava que tinha que se TER um MARIDÃO.

Então, meninas ainda, a gente sonhava com todos os quesitos vigentes na cartilha social virtual, e depois de casadas, ainda jovens e imaturas demais, as mulheres tínhamos um certo hábito inconveniente de se AUTO questionar se aquela pobre criatura presente ao nosso lado realmente era tão MARIDÃO ASSIM, como o recomendado pela "boca pequena".

Coisa sofrida aquela...além de ter que casar na marra do social ainda tinha que se acertar na cartilha compulsória do exigido!

Naquela noite, então, a casa nos recebeu a todos como o requinte da época: cadeiras e mesas bem vestidas, toalhas e guardanapos de linho branco, decoração floral pastel impecável, velas aconchegantes que dançavam suas sombras sensuais na penumbra do salão , garçons educadíssimos e, ao fundo, um suave piano soava uma partitura delicadamente algo "pop-erudita" que nos convidava a dançar "coladinho".

Os casais, nem todos se conheciam e na nossa mesa fomos apresentados a um deles cuja esposa, do nada, começou a endeusar o seu ser marido.

Coisa de louco!

Não, aquilo não era normal...e não seria, mas eu só constataria minha certeza lá no final do evento .

Dirigiu-se a mim a declarar ”muito prazer, esse é meu marido Otávio, o melhor marido do mundo, então, vamos brindar a ele!”.

Confesso que me inquietei com a exposição.

Ter o melhor marido do mundo me parecia, de fato, ser a mulher mais sortuda do mundo...tipo, ganhar a sorte grande.

E ainda teríamos que brindar...a sortuda sorte alheia. Contemporizamos.

“Olá , muito prazer, claro, vamos brindar!”, respondemos quase em coro dual...

E continuou ela, totalmente fora do contexto:

” Sabe amigos, Otávio não é só o melhor marido do mundo não, imagine se é só isso, é o melhor companheiro desta vida , o melhor amante, o melhor pai, o melhor profissional, o melhor amigo, o melhor confidente, a melhor mão nas horas difíceis, ele me ajuda em todas as tarefas domésticas, inclusive com as crianças, olha, sinceramente eu não poderia ter um marido, realmente o melhor desta vida, vamos brindar minha sorte!”.

E eu ali, brindando e pensando...nos bastidores.

“E nem nas outras vidas haveria um maridão desses ”- sonhei com meus botões.

E assim o tempo se passava a nos assentir: “sim, vamos brindar!”

Comecei então a observar o grande OTÁVIO com olhos mais técnicos, digamos, me perguntando o que precisaria ter uma mulher comum como eu para a sorte de ter aquele melhor marido do mundo.

Não era inveja, juro, não sou disso, era só curiosidade científica sobre maridos doutro mundo.

E a festa seguia...

Ocorre que os brindes “do e ao” marido Otávio também eram os maiores e perenes brindes do mundo.

Ele, sentado à minha direita na mesa, não demorou a entortar o seu pescoço no meu ombro, depois que os brindes a ele lhe subiram ao cérebro.

Aquilo me pesava...

“AH, me desculpe, me distraí...” me disse ao menos umas dez vezes.

Ara, e estava perdoado.

Afinal eu tinha ali, decaído aos meus ombros, o melhor marido do mundo!

Experiência inenarrável.

A esposa me olhava meio sem jeito enquanto eu me desviava daquele segmento cefálico pendular do melhor marido do mundo...nitidamente já nem tão apropriado assim...ainda mais para aquele momento.

E a festa seguia...”vamos brindar”!

Lá para tantas, Otávio já roncava no meu ombro...imóvel, às vezes se desequilibrando da cadeira, momento em que de súbito acordava zonzo e dizia já bem ébrio : “então, vamos brindar a mim!”...e logo nos ressonava o maior ronco do mundo.

Fiquei refém daquilo. Não poderia ser indelicada com um maridão a protagonizar o maior mico do mundo...

A esposa me olhava sem graça e explicava: ”é que ...sabe, mesmo sendo o melhor marido do mundo...ele tem só esse defeitinho”.

Ara, era um mínimo defeito, afinal, que marido não tem um defeitinho?

“Vamos brindar só um defeitinho!” arrisquei para sublimar a cena.

“Eu não dirijo automóveis, e agora?” nos explicou a esposa, subliminarmente a nos pedir socorro móvel.

Digo que, para mim , a festa terminou como a mais pedagógica experiência deste mundo!

E eu saí dali feliz da vida, cientificamente perita em diagnosticar “maridões”.

Já no fechamento da casa, madrugada alta e quando todos já haviam fugido do resgate do melhor marido do mundo , percebemos que sobraria para nós o rebocarmos para um mundo bem mais seguro, livre dos perigos embriagantes daquele mundo tão micado.

Ele saiu dali todo flácido, roncando ao alto, carregado pelos impecáveis garçons até o nosso automóvel.

Confesso: desde aquele dia, NUNCA MAIS acreditei nessa coisa de ”melhor marido do mundo”. Um alivio sócio-conjugal.

Bah!-para a sociedade cansativa que só encena o tudo de melhor.

Minha tese de aprendizado que divido com quem me lê: atrás do melhor marido do mundo pode se esconder o maior mico do mesmo mundo, algo para, carinhosamente, também se chamar de SEU, e por que não?

E a constatação do susto é sempre diretamente proporcional aos delírios de grandeza dos sonhos intangíveis.

Mas, obviamente, ainda está valendo sonhar.

Nota da autora:

Verídico, só troquei o nome do maior mico do mundo.

já pedindo licença e desculpas aos grandes Otávios do nosso mundo real.