Uma formiga vê os homens
Pelo o que entendi, os pequenos têm uma fascinação enorme pelo vai-e-vem de nosso mundo, e em vez de se deixarem inspirar e ir e vir também, ficam parados, observando, indo e voltando com a cabeça, pendentes sobre os cantos dos formigueiros e sobre as filas de formigas.
Mas isso é só a versão pequena desses seres; depois que crescem, esquecem possa existir qualquer coisa debaixo de seus pés ou acima de sua cabeça. Passam sem cuidado, destroem famílias sem notar, são abobados, sem consciência do que estão fazendo. A falta de cuidado dos homens é uma manutenção de nosso povo: matam milhares de nós, apenas ao atravessar uma calçada, mas também deixam migalhas em qualquer canto, esquecem pratos cheios ao relento, e assim tomamos tudo aquilo que lhes parece inútil o suficiente para ser abandonado.
Vejo que aqueles poucos que param e nos observam, bestas, riem de quando nós, uma carreira indo e outra voltando, lado a lado, nos saudamos, quase como num choque acidental, mas riem porque não sabem: o encontro cabeça-com-cabeça é proposital, é uma espécie se vendo una, tomando conhecimento que todos nós, formigas, estamos inevitavelmente vulneráveis à chuva, aos calçados dos homens e à sua crueldade de desmantelar lares por prazer nenhum, e ao parar no meio do serviço, deixar a folhinha pesada no chão e cumprimentar aquele que logo estará carregando outra folhinha da mesma planta, nos faz mais dignos.
Ao que parece, os homens também são pêndulos, indo e voltando, mas não se deixam chocar, passam lado a lado como se uma formiga passasse por um homem e vice-e-versa. Será que se julgam maiores e menores, como uma formiga julga um homem e um homem uma formiga? Sua espécie aparentemente não se reconhece como espécie, como um bicho que compartilha coisas, e aparentemente o descaso que o faz derrubar migalhas enormes sobre a mesa também o faz passar por outro homem sem olhá-lo no olho.
Pobre homens, tão grandes, fortes, tendo o mundo todo construído ao seu favor, do seu tamanho, adequado para si, podendo carregar mil folhas de uma vez sem cansar-se, população principal, que anda relaxadamente sem pensar nas consequências de seu andar, de seu descaso, não olham para baixo nem para cima, e não respeitam nem seus semelhantes...Se acham muito especiais, mas pra nós, atingem o máximo da sua utilidade quando mortos: servem de alimento para milhares e milhares de nós.
Paródia do poema ''Um boi vê os homens'', de Drummond.