O Filósofo de Itapecim
 
Com certeza todos já tivemos a ventura, para não usar termo pejorativo, de cruzar com um sábio de plateia, ou sábio de araque em bom português. Aquele elemento que decora meia-dúzia, talvez um tanto mais de frases de efeito e que assim se coloca como entendido em coisa nenhuma, um verdadeiro especialista do vazio. Alguns ganham notoriedade, passam por eruditos, excêntricos, angariando respeito profundo na sociedade que habitam.
 
Um desses fazia questão, na repartição em que trabalhei, de desfilar o seu cabedal de notoriedades, às vezes, um tanto absurdas.  O nosso amigo mal concluíra o segundo grau, no entanto era muito interessado em qualquer notícia de cunho científico. Conseguia debater de antropologia à astronomia, passando pela literatura, botânica e história. Parecia não haver assunto no qual adentrasse e conseguisse sair-se bem, pelo menos, até deparar-se com alguém que realmente sabia do que estava falando. Nesses casos, engolia em seco e retirava-se de modo humilhante, literalmente, com as orelhas abaixadas.
 
Um dos mais relevantes desses elementos, no entanto, foi um indivíduo do qual ouvi falar em uma de minhas passagens pela boa terra das Minas Gerais. O nome do município hei de modificar, criando um objeto ficcional, para preservar os moradores de qualquer embaraço. Lá pelos lados de Itapecim (nome fictício para uma figura real), apareceu um dia um notável filósofo. Ninguém sabe ao certo como e de onde veio, mas o elemento ganhou veloz influência nos meios culturais e políticos.
 
Sua eloquência hipnotizava a todos, além da sua proverbial e incontestável sabedoria. O filósofo de Itapecim foi convidado a ministrar aulas nas escolas, a orar na câmara municipal, ganhou cargo de assessor especial do prefeito, com remuneração e gratificação. Aprovaram uma lei “extraordinária” autorizando sua contratação em tempo integral, além de receber moradia gratuita, todas as contas pagas e um veículo para o seu transporte. A cidade não poderia perder um elemento tão importante, que agregava incomensurável valor ao patrimônio cultural da cidade.
 
Por vários anos reinou soberanamente. Era um homem de poucas frases, o que costumava fazer era emendar diversas, em uma seqüência de inquestionável complexidade, atordoando o interlocutor menos preparado. Como no Brasil, sabido por todos é, que a simples leitura de manuais de eletrônicos causa repulsa e adiamentos injustificáveis, o filósofo encontrou campo fértil para prosperar.
 
Caiu-me em mãos uma entrevista feita por um grupo de estudantes do grêmio local, que teimosamente fora guardada na taberna local pelo diligente proprietário. Destaco que o ilustre filósofo ainda era considerado uma personalidade local, tendo sido homenageado com a cidadania, nome em escola, uma praça e larga avenida enfeitada por canteiros de hortênsias floridas. Transcrevo a íntegra da entrevista, devidamente anotada em uma folha de caderno espiral, utilizada pelo prestativo taberneiro, que acreditava que eu ajudaria a preservar a memória do ilustre Itapecimense.
 
Entrevista do Grêmio estudantil:

- Boa tarde, senhor!
- A saudação cordial é uma primazia venturosa entre os homens de extensa boa-vontade, embora, não se conheça em batalhas de morte quem a preze, pois o que vale na luta e nas batalhas dos campos de guerra é a famigerada conquista da morte – uma glória para os combatentes de útil vertente!
- Êta, mas que “porreta”! - Os jovens gravaram a entrevista, em um daqueles antigos gravadores de fita cassete, desconhecido pela modernidade, e foram absolutamente fiéis a todos os detalhes.
- Dispensar termos menos afáveis é exercício de prudência essencial às boas relações humanas!
- O que o senhor acha do Marxismo?
- Toda filosofia essencialmente humana que visa a igualdade absoluta entre os parâmetros opostos tende a homogeneização das massas e ao óbito das correlações primordiais.
- Então o senhor é a favor do capitalismo?
- A doutrina diretiva da correta acepção ora tão bem alardeada leva á conclusão absoluta de que as contrapartes se equilibram na sua casualidade oposta. Mais claro do que isso somente a assertiva benevolente de negar minha proveniência pessoal e indistinta.


O silêncio que fizeram diante da resposta permitiu que, por segundo, o bater de asas de uma mosca fosse captado.
- A democracia vai ter vez no Brasil?
- A escolha dos rumos infindáveis, aos quais admoesta a nossa resplandecente nação, induz à conclusão absoluta de que os porquês da intermediação vital do processo ora vigente, necessita de breve prosaísmo, sem o qual toda a contumácia se mostrará isenta de postulação.
- E a inflação, vai ter ser domada pelo futuro governo civil? - A inflação era um tema absolutamente indispensável naquela época.
- O domínio das heterodoxias e parcimônias que o futuro gestor da causa pública pretende adotar, conforme investigação meticulosa, por nós delineada, em buscas que nos exauriram durante soturnas madrugadas, leva-nos a crer que o caminho salutar para debelar o vício macroeconômico, dispersar-se-á no próprio intento, devido ao extremo descalabro que por ora impera nos elementos constituintes da república ainda incipiente.
 
A entrevista foi breve, não se sabe porque o repertório do nosso filósofo ameaçava findar ou devido a algum compromisso que realmente devia aguarda-lo. Menor não foi a minha surpresa, ao caminhar pela praça central, deparando-me com mais uma pérola do notável cidadão, gravada em placa de bronze:
 
- “O poder, ao determinar elementos de corrupção, vasculha o abjeto inservível a postar-se de lado nas lutas triviais.”
 
Soube que o ilustre falecera poucos anos depois da entrevista recebendo todas as honras possíveis. Sendo pobre o meu vocabulário, deixo ao amigo a façanha de interpretar o pensamento do filósofo de Itapecim.

Que descanse em paz...