Dança Comigo?
Festa adolescente. Colégio inteiro lá no fim do ano. Não importavam as notas, não importavam os mestres e sua carranca de salário mínimo. Não importavam os pais em suas cobranças de exagero pelo acerto que poderia ou não vir no correr daquelas vidas insipientes e frágeis.
O que importava era o ritmo da balada noturna. O som alto varrendo a alma e fazendo com que cada célula do corpo dançasse a um ritmo frenético, louco, tendo cada qual bilhões de neurônios testemunhando os pulos uns dos outros a estalar nos cérebros jovens e ansiosos.
Flávio era um daqueles jovens.
Vestira sua melhor roupa e perdera horas tentando pentear um cabelo que não se encontrava. A solução foi roubar um pouco do gel no banheiro da mãe. Pronto. Vou de óculo? Sem óculos? Vão me chamar de otário com óculos. Vou sem óculos.
Em pouco a buzina do pai do carro do amigo que os levaria soou ao portão.
- Flávio? – Gritou sua mãe em pânico. Ela queria que o filho se enturmasse e recebeu com surpresa o convite que deitaram ao garoto.
- Até que enfim! – Pensou. Temia que virasse um daqueles que se metem no quarto a estudar e acabam solitários, correndo para uma droga ou outra, sem mulher, sem família, sem amigos...
Nos seus devaneios de mãe insegura, queria um filho estudioso – o que ele era – mas também um engajado socialmente. As duas coisas, no entanto, parecem ser óleo na água. Flávio era óleo fino ou água pura e cristalina. Faltava decidir qual, mas não poderia ser ambos.
- Leva agasalho, Filho!
Contrariado, respondeu bruto como couro de rinoceronte?
- Pra quê, Mãe?
- Pode fazer frio. Você pode pegar uma gripe!
- Ah, Mãe!
- Toma, leva!
Sem força ou coragem, pegou o agasalho abruptamente com um gesto estúpido.
- E meu beijo?
Voltou e deu-lhe um beijo seco que estalou como um peteleco no inimigo.
Ao ver o amigo saindo com um agasalho na mão em direção ao carro, Marcelo não pode deixar de rir...
- Fala!
- Fala!
- Boa noite Seu Otávio!
- Entra aí e deixa seu casaco ali, junto do meu!
Os três riram. A solidariedade masculina entende longamente o que significam as mães. Marcelo era muito mais enturmado que Flávio e poucos entendiam como criaturas tão diferentes poderiam se dar bem enquanto amigos. Em verdade, se completavam, pois Flávio acabava ajudando-o tanto nas lições de casa quanto nas provas mais difíceis. Ademais, dividiam o apreço por jogos de tabuleiro, visto a onda de vídeo games ainda não ser presente naqueles anos 80.
O carro chegou em pouco à casa de Lívia. Comemorando seu aniversário de fim de ano, recebia os colegas e alguns professores mais cordiais.
- Chamou o Camargo? – Perguntou Marcelo a Flávio.
- Tomara que não! – Riram. O professor de Matemática era o típico estraga qualquer festa.
Ao sair do carro deixaram os casacos de frio. Marcelo trouxera uma caixa de bombons e Flávio escondera um pequeno livro de bolso, Minutos de Sabedoria, para entregar à colega. Caxias nunca seria outra coisa – era um ditado da época. Sempre afeito aos estudos e aos livros, embora no íntimo carregasse um desejo agudo por popularidade. Também, queria uma namorada, um olhar meigo, um toque doce e gentil que fosse de uma moça bonita. Só que, ao aproximar-se do sexo oposto, tremia todo por dentro, as palavras fugiam e acaba sempre dizendo e fazendo algo tremendamente idiota.
Livia recebeu os presentes derramando-se de trejeitos e predicados pelo presente de Marcelo. Sendo educada e atenciosa, abriu o pequeno volume que Flávio, envergonhado, tirara do bolso.
- Minutos de Sabedoria?
- Sim. Tenho um desses na cabeceira da cama e me ajuda muito.
- Puxa, legal! – A aniversariante foi sincera.
Flávio sentiu-se um gigante. Marcelo olhou intrigado ao amigo.
- Não é que o troço do livrinho pegou bem? – Pensou.
A festinha corria bem. Marcelo já foi logo se enturmando e saindo contando piadianhas e trocando três beijinhos com todas as meninas. Flávio, na cola, encabulado, fingia mover o corpo ao ritmo da música latejante. O tempo foi passando e todos ali, animados.
Flávio procurando se encaixar. Comia alguns salgadinhos, bebia refrigerante, tentava um assunto ou outro, mas não se enquadrou em nenhuma roda. Resolveu ficar sentado a um canto em uma das cadeiras que foram todas colocadas contra a parede, transformando a sala maior da casa de Lívia em um tipo de salão dançante. Fingia estar gostando até que chegou a hora da imensa tortura. Poucos minutos antes ouvira o Marcelo falar para um grupo de colegas:
- Aposto que o Flávio não consegue dançar lenta com ninguém! – Riram muito.
Chegou a hora da música lenta. Aquele momento raro de sedução aonde os corpos podiam se aproximar e, algum mais ousado, ainda tirava uma casquinha ou outra. Marcelo eram um dos mais cortejados e não falhava em nenhum pedido de dança. Flávio, ao contrário, retinha tanto calor que a Coca nas mãos já borbulha dentro do copo de vidro. Na sua cabeça perguntava:
- Danço? Não danço? Chamo aquela? Não. Aquela não. A outra. Quem sabe a gorda? Não. A gorda não. E o tempo passando e o Marcelo, por vezes o provocava:
- Nada ainda? Encalhou, Mano? – E saía sorridente.
Flávio, então, notou algo de interesse. Uma garota razoavelmente bonita que dançava lenta com todos. Foi criando coragem a noite toda. Passou a pular de uma cadeira a outra aproximando-se de onde ela ficava. Foi chegando, chegando... Quando ia chamar um colega a chamou antes. Estava apavorado. Havia quase que uma regra naquelas festinhas em salas e garagens. A música lenta tinha um momento em que acabava para nunca mais. Sabia que no máximo haveria umas duas músicas. Deu-lhe pânico. Sabia que Marcelo e os outros o mediam. Era questão de honra tirar uma dança, nem que fosse só uma dança. Quando a menina que dançava com todos sentou, não aguentava mais seus pés, porém Flávio não sabia disso.
- Quer dançar? – Perguntou-lhe num rompante tomando toda a coragem do mundo.
- Você se importa se não?
Flávio viu seu mundo ruir. As bombas de Hioroshima e Nagasaki juntas não causaram tanto estrago. Marcelo e os outros soltaram uma gargalhada coletiva terrível, no justo momento que a música parou. Flávio não ficou só vermelho, ficou roxo. Sua autoestima se arrastava abaixo da linha de magma do núcleo central da Terra e fervilhava na explosão de mil sóis em vergonha maiúscula.
Queria logo ir para casa, mas ainda teve que ouvir os Parabéns!
Festas naquela fase eram assim. Meia-noite e meia e os pais já se postavam buscando todos.
Dentro do carro o Pai do Marcelo perguntou-lhes?
- E a noite garotos?
- Dancei todas! – Disse Marcelo triunfante.
Através do retrovisor via que o amigo do filho estava tão mudo e pisoteado quanto capacho de boas vindas:
- E tu, Flávio?
- Tomei um fora de doer nos cornos!
Riram tanto que até Flávio se esqueceu, por minutos, do seu infortúnio saindo para ser feliz ao seu estilo...
Festa adolescente. Colégio inteiro lá no fim do ano. Não importavam as notas, não importavam os mestres e sua carranca de salário mínimo. Não importavam os pais em suas cobranças de exagero pelo acerto que poderia ou não vir no correr daquelas vidas insipientes e frágeis.
O que importava era o ritmo da balada noturna. O som alto varrendo a alma e fazendo com que cada célula do corpo dançasse a um ritmo frenético, louco, tendo cada qual bilhões de neurônios testemunhando os pulos uns dos outros a estalar nos cérebros jovens e ansiosos.
Flávio era um daqueles jovens.
Vestira sua melhor roupa e perdera horas tentando pentear um cabelo que não se encontrava. A solução foi roubar um pouco do gel no banheiro da mãe. Pronto. Vou de óculo? Sem óculos? Vão me chamar de otário com óculos. Vou sem óculos.
Em pouco a buzina do pai do carro do amigo que os levaria soou ao portão.
- Flávio? – Gritou sua mãe em pânico. Ela queria que o filho se enturmasse e recebeu com surpresa o convite que deitaram ao garoto.
- Até que enfim! – Pensou. Temia que virasse um daqueles que se metem no quarto a estudar e acabam solitários, correndo para uma droga ou outra, sem mulher, sem família, sem amigos...
Nos seus devaneios de mãe insegura, queria um filho estudioso – o que ele era – mas também um engajado socialmente. As duas coisas, no entanto, parecem ser óleo na água. Flávio era óleo fino ou água pura e cristalina. Faltava decidir qual, mas não poderia ser ambos.
- Leva agasalho, Filho!
Contrariado, respondeu bruto como couro de rinoceronte?
- Pra quê, Mãe?
- Pode fazer frio. Você pode pegar uma gripe!
- Ah, Mãe!
- Toma, leva!
Sem força ou coragem, pegou o agasalho abruptamente com um gesto estúpido.
- E meu beijo?
Voltou e deu-lhe um beijo seco que estalou como um peteleco no inimigo.
Ao ver o amigo saindo com um agasalho na mão em direção ao carro, Marcelo não pode deixar de rir...
- Fala!
- Fala!
- Boa noite Seu Otávio!
- Entra aí e deixa seu casaco ali, junto do meu!
Os três riram. A solidariedade masculina entende longamente o que significam as mães. Marcelo era muito mais enturmado que Flávio e poucos entendiam como criaturas tão diferentes poderiam se dar bem enquanto amigos. Em verdade, se completavam, pois Flávio acabava ajudando-o tanto nas lições de casa quanto nas provas mais difíceis. Ademais, dividiam o apreço por jogos de tabuleiro, visto a onda de vídeo games ainda não ser presente naqueles anos 80.
O carro chegou em pouco à casa de Lívia. Comemorando seu aniversário de fim de ano, recebia os colegas e alguns professores mais cordiais.
- Chamou o Camargo? – Perguntou Marcelo a Flávio.
- Tomara que não! – Riram. O professor de Matemática era o típico estraga qualquer festa.
Ao sair do carro deixaram os casacos de frio. Marcelo trouxera uma caixa de bombons e Flávio escondera um pequeno livro de bolso, Minutos de Sabedoria, para entregar à colega. Caxias nunca seria outra coisa – era um ditado da época. Sempre afeito aos estudos e aos livros, embora no íntimo carregasse um desejo agudo por popularidade. Também, queria uma namorada, um olhar meigo, um toque doce e gentil que fosse de uma moça bonita. Só que, ao aproximar-se do sexo oposto, tremia todo por dentro, as palavras fugiam e acaba sempre dizendo e fazendo algo tremendamente idiota.
Livia recebeu os presentes derramando-se de trejeitos e predicados pelo presente de Marcelo. Sendo educada e atenciosa, abriu o pequeno volume que Flávio, envergonhado, tirara do bolso.
- Minutos de Sabedoria?
- Sim. Tenho um desses na cabeceira da cama e me ajuda muito.
- Puxa, legal! – A aniversariante foi sincera.
Flávio sentiu-se um gigante. Marcelo olhou intrigado ao amigo.
- Não é que o troço do livrinho pegou bem? – Pensou.
A festinha corria bem. Marcelo já foi logo se enturmando e saindo contando piadianhas e trocando três beijinhos com todas as meninas. Flávio, na cola, encabulado, fingia mover o corpo ao ritmo da música latejante. O tempo foi passando e todos ali, animados.
Flávio procurando se encaixar. Comia alguns salgadinhos, bebia refrigerante, tentava um assunto ou outro, mas não se enquadrou em nenhuma roda. Resolveu ficar sentado a um canto em uma das cadeiras que foram todas colocadas contra a parede, transformando a sala maior da casa de Lívia em um tipo de salão dançante. Fingia estar gostando até que chegou a hora da imensa tortura. Poucos minutos antes ouvira o Marcelo falar para um grupo de colegas:
- Aposto que o Flávio não consegue dançar lenta com ninguém! – Riram muito.
Chegou a hora da música lenta. Aquele momento raro de sedução aonde os corpos podiam se aproximar e, algum mais ousado, ainda tirava uma casquinha ou outra. Marcelo eram um dos mais cortejados e não falhava em nenhum pedido de dança. Flávio, ao contrário, retinha tanto calor que a Coca nas mãos já borbulha dentro do copo de vidro. Na sua cabeça perguntava:
- Danço? Não danço? Chamo aquela? Não. Aquela não. A outra. Quem sabe a gorda? Não. A gorda não. E o tempo passando e o Marcelo, por vezes o provocava:
- Nada ainda? Encalhou, Mano? – E saía sorridente.
Flávio, então, notou algo de interesse. Uma garota razoavelmente bonita que dançava lenta com todos. Foi criando coragem a noite toda. Passou a pular de uma cadeira a outra aproximando-se de onde ela ficava. Foi chegando, chegando... Quando ia chamar um colega a chamou antes. Estava apavorado. Havia quase que uma regra naquelas festinhas em salas e garagens. A música lenta tinha um momento em que acabava para nunca mais. Sabia que no máximo haveria umas duas músicas. Deu-lhe pânico. Sabia que Marcelo e os outros o mediam. Era questão de honra tirar uma dança, nem que fosse só uma dança. Quando a menina que dançava com todos sentou, não aguentava mais seus pés, porém Flávio não sabia disso.
- Quer dançar? – Perguntou-lhe num rompante tomando toda a coragem do mundo.
- Você se importa se não?
Flávio viu seu mundo ruir. As bombas de Hioroshima e Nagasaki juntas não causaram tanto estrago. Marcelo e os outros soltaram uma gargalhada coletiva terrível, no justo momento que a música parou. Flávio não ficou só vermelho, ficou roxo. Sua autoestima se arrastava abaixo da linha de magma do núcleo central da Terra e fervilhava na explosão de mil sóis em vergonha maiúscula.
Queria logo ir para casa, mas ainda teve que ouvir os Parabéns!
Festas naquela fase eram assim. Meia-noite e meia e os pais já se postavam buscando todos.
Dentro do carro o Pai do Marcelo perguntou-lhes?
- E a noite garotos?
- Dancei todas! – Disse Marcelo triunfante.
Através do retrovisor via que o amigo do filho estava tão mudo e pisoteado quanto capacho de boas vindas:
- E tu, Flávio?
- Tomei um fora de doer nos cornos!
Riram tanto que até Flávio se esqueceu, por minutos, do seu infortúnio saindo para ser feliz ao seu estilo...