Os Psicólogos

No centro da cidade de Itaburú há uma praça, a Praça Central de Itaburú, no centro dessa praça você encontra uma árvore centenária. Conta a história que no passado a sombra dessa árvore serviu tão bem a um grupo de viajantes que por ali passavam, que decidiram, ficar e fundar uma vila, a vila de Itaburú. Atualmente a árvore segue os passos de todos os monumentos históricos, ganhando uma placa que conta sua história e sendo esquecida logo em seguida. Todos os dias, centenas de moradores a ignoram, não dando seu devido valor histórico. Ah se as árvores pudessem falar... Quantas e quantas histórias não se desenrolaram aos pés daquela velha jabuticabeira? Hoje em especial, mais uma se desenrola, e eu, como cronista concursado da prefeitura de Itaburú, tenho o prazer de lhes trazer essa pequena missiva. De um banco de pedra, banco esse muito desconfortável devo dizer, matava algumas horas do meu dia. A Praça central de Itaburú é um lugar deveras agradável, é curiosamente perto de tudo e magicamente longe de todo tipo de barulho e agitação, por isso é comum na hora do almoço encontrar vários personagens batendo perna por aquelas paragens. Estava eu lá, desfrutando do mais puro ócio da hora do almoço, penso inclusive que nosso idioma deveria criar uma palavra específica para o ócio lícito da hora do almoço, pois bem, pude ver o Dr.Dr. Meireles cruzando a praça e parando bem a sombra da nossa já citada árvore para atender seu celular e travar uma das conversas mais insólitas que já presenciei. Mas, permita-me o paciente leitor, uma breve explanação sobre o Dr.Dr. Meireles, a começar pelo seu título, de Dr.Dr.. Sim, o Dr.Dr. Meireles é um dos homens mais ilustres de Itaburú, formado pela Universidade Federal de Itaburú, a UFita, o Dr.Dr. Meireles atende seus pacientes em um consultório próximo a praça. Formado em psicologia e em medicina veterinária, o Dr.Dr. Meireles é um homem icônico dessa cidade, possuindo duas graduações em áreas tão distintas e dois doutorados em áreas tão avessas, Dr.Dr. Meireles ganhou fama zombeteira na cidade como psicólogo dos cachorros e veterinário dos desiludidos. Mas verdade seja dita, não há um psicólogo tão bom ou tão recomendado quanto o Dr.Dr. Meireles. Apresentações feitas, sigamos ao relato da fatídica conversa.

-Alô

-Oi! Dr. Meireles, é o senhor?

-Fraga?

-Sim Dr. Sou eu, preciso conversar com você.

-Fraga meu amigo! Que bom ouvir sua voz! Fraga, Fraguinho, Frangão!

-Oh rapaz, você ainda lembra disso? Ah anos ninguém brinca assim comigo.

-Bons tempos Fraga, a faculdade deixou saudades, mas diz ai meu amigo, o que te afliges?

-Um paciente meu, Meireles, não estou sabendo como agir com isso, é um caso... Excepcional.

-O que houve Fraguinha, você esta bem?

-Não cara, eu... Acho que me deixei envolver com os problemas do meu paciente.

-Poxa Fraga, você é macaco velho, é um psicólogo e tanto! Você sabe que não podemos trazer o trabalho para nossa intimidade cara.

-Eu sei mano, eu sei. Lembra do Professor "Roupa Nova"?

-Roupa Nova?

-O Mestre Ricardo?

-Sim, lembro sim, o que tem ele?

-Ele sempre falava sobre a síndrome de Brunout, sobre os malefícios que o trabalho pode trazer e...

-Então Fraga, você não pode deixar os problemas dos pacientes te afetarem.

-Eu sei Meireles, eu sei, mas... Ai cara, é difícil falar... Olha, não é ético o que vou te dizer, mas... O problema do meu paciente é muito complexo, sinto-me responsável por achar uma solução para essa causa, entende? E o meu paciente é o...

-Ei, espera ai, olha a ética meu amigo, você não pode sair abrindo o bico assim.

-É o Tuca. Pronto, falei, o Tuca veio falar comigo e não estou sabendo lidar com isso.

-O Tuca? Você esta falando sério? O Tuca-catuca?

-Esse mesmo.

-Desde a faculdade não tenho mais notícias dele.

-Eu também não tinha, semana passada ele apareceu no meu consultório, ele estava nervoso cara, visivelmente agitado, perturbado. Ele falou que está atendendo em São Bapú, trabalha como servidos municipal de lá.

-E... O que ele tem?

-Onde está sua ética agora Dr. Meireles? Mas que pergunta.

-Ora, “pro diabo” com a ética, é o Tuca cara! O cara recebeu aquele prêmio do Conselho de Psicologia, o cara é Top Top Top.

-Eu sei... Por isso ele veio falar comigo, não queria se expor, afinal um psicólogo se consultando com outro fica queimado na praça.

-Verdade, Médicos não podem adoecer... Mas o que houve?

-Então, há seis meses o Tuca atendeu um senhor, ele não me disse quem era, mas disse que o cara estava atormentado em um nível preocupante, um transtorno de ansiedade generalizada de alto nível.

-Certo.

-Tuca foi conversando com ele e tal, todo o procedimento de sempre. O cara sofria de uma ansiedade avassaladora, mas se recusava a tocar na origem do problema. Até que um dia o cara se abriu, contou o que lhe afligia.

-Até agora tudo normal.

-Pois é, o caso começa agora. Tuca surtou, ele trouxe toda a angústia do cara pra si. Passou seis meses remoendo o assunto sem saber como se livrar daquilo.

-Sei.

-Então, quando já estava no limite veio me ver.

-E você o orientou?

-Sim, falei basicamente o que você me falou, mas ele disse que não era por ai.

-Como assim?

-Ele disse que o caso era sério, que se ele me contasse a situação do paciente eu o entenderia, que também me sentiria responsável.

-E então, ele te contou? O Tuca contou?

-Contou sim cara. E vou te dizer... Dei razão ao Tuca, entendi o porquê de tanta angústia da parte dele.

-Poxa Fraga! Você alimentou a cisma dele!

-Meireles meu amigo, admiro muito você, mas você não entende o problema.

-Cara, não justifica, por pior que seja o problema do paciente do Tuca, isso não justifica que ele se apegue tanto assim.

-Justifica mano, tanto justifica que depois que o Tuca me contou eu dei razão a ele. E depois de alguns dias, eu mesmo me peguei pensando na situação. Hoje em dia não consigo nem dormir direito, acho que estou enlouquecendo igual ao Tuca.

-Igual ao Tuca e ao paciente dele.

-Isso mesmo, não sabia a que recorrer, então... Lembrei-me de ti.

-Eu compreendo Fraga, você e o Tuca estão partilhando esse problema, faz o seguinte, me conta essa história, aproveita que estou no horário de almoço.

-Vou te contar Meireles, mas você não vai gostar. O paciente tem uma filha adolescente, essa menina estava com uns problemas, procurou o pai e abriu o jogo. O pai não aguentou a pressão e procurou o Tuca. A história então não é bem do paciente do Tuca, é da filha dele.

-Santo Pai, mas que cama de gato. Não acredito que sejam problemas tão graves assim os problemas de uma adolescente a ponto de deixar dois psicólogos sem dormir.

-Três meu amigo, três. O pai da menina também é psicólogo.

-Fraga, vamos fazer o seguinte, eu vou até o meu escritório e você liga novamente, então conversamos melhor. Pode ser? Nessa idade canso rápido de ficar em pé.

-Claro Meireles, jajá te ligo então.

A essa altura, meu amigo leitor, eu já estava totalmente desligado das minhas palavras cruzadas. Pela graça do destino pude ouvir a conversa em bom som e isso me deixou por demais curioso. A avançada idade do Dr.Dr. Meireles o fez não diferenciar uma ligação normal de uma ligação no viva-voz, e eu, como bom cronista que sou, aproveitei-me da situação. Entretanto, se fora a idade avançada do Dr.Dr. Meireles que me proporcionou conhecer o início da história, foi a mesma que o fez querer o aconchego de seu escritório. Mas não se aflijam queridos leitores, não me fiz de rogado. Pensando na importância do registro segui até o consultório do Dr.Dr. Meireles. A vantagem de se morar em Itaburú é a tranquilidade, pouco movimento nas ruas. Providencialmente consegui subir em uma árvore e ficar próximo a janela do nosso... Personagem. Se a história começou ao pé de uma árvore, nada mais justo do que terminar na copa de outra. Em alguns instantes o circo estava montado. O telefone da mesa tocara e após alguns comprimentos a história seguiu. É nesse momento que devo me desculpar. Por infelicidade minha não consegui ouvir parte da história. Uma janela fechada e uma britadeira fora de hora, junto com alguns funcionário da pedreira me privaram de trazer-vos todo esse capítulo das Crônicas de Itaburú, entretanto, apresento a seguir o que de melhor consegui.

-E então Fraga? Ainda acho que você só precisa de férias. Não pode ser tão ruim assim.

-Eu pensei até em chamar a polícia cara.

-É caso de polícia?

-É e não é. É caso para a secretaria de obras também.

-Houve algum tipo de abuso sexual ou coisa do tipo?

-Não mano, foi coisa séria, outro nível de problema. Nada da área sexual. Pobre Chico.

-Chico?

-Sim, um padre chamado Chico, ele não teve culpa, o pneu já estava lá.

-Pneu? Fraga, conta essa história direto, se não eu não posso te ajudar. Vai, o que houve com o pneu do carro...?

-Caminhão cara. Era um pneu de caminhão, ele já estava lá e o menino culpou o padre.

-Calma Fraguinha. Vamos lá, conte-me desde o começo.

-Tudo bem. No dia dos professores houve uma confraternização na paróquia da cidade, lá estavam várias pessoas, mas por hora é importante atentar para apenas três. O padre o menino e um jegue. Fora o pneu de caminhão. Eu sei, pneu não é ser humano, mas espere eu contar tudo e você vai me compreender. Havia um soldado também, mas o que ferrou tudo foi o sorvete.

-Espera só um pouco Fraga, está um vento frio, vou fechar um pouco a janela.

Então leitor, ai entra a tal janela. Não pode ouvir a história, mas pude ver que o Dr.Dr. Meireles ria bastante no começo, cheguei a ver algumas gargalhadas. Cerca de quinze minutos depois tomou um ar mais sério, taciturno, como se ouvisse uma confissão macabra de algo que acontecera recentemente. Depois de meia hora ele já estava suando, passava as mãos pelo cabelo em sinal de desespero, gesticulava e gritava ao telefone. Tomou alguns copos de café, fumou alguns cigarros e por pouco não tomou seus cigarros e fumou seu café. A cena se manteve por algum tempo, cerca de mais um quarto de hora. O Dr.Dr. Meireles estava como quem rolou ladeira abaixo. Seu cabelo bagunçado, uma expressão cansada no rosto e sua roupa toda desajustada. Acredito que o calor o fez tornar abrir a janela.

-Mas desse modo Fraga, todo mundo iria ficar sabendo, digo, realmente todo o mundo, até porque essas são as oito línguas mais faladas na Terra.

-Exato, acredito que esse era o objetivo.

-Mas continue, por favor.

-Certo. Então foi ai que o delegado bateu na cara do padre e o soldado soltou o jumento. Mas ela não ia deixar barato, afinal ela tinha o memorando e com ou sem internet ela faria valer suas prerrogativas. Antes que o delegado pudesse [aqui entra a tal britadeira fora de ora] e ai meu amigo, em terra de cego quem tem um olho é rei. O Policial federal fez o que mandava a lei, sacou a pistola e disparou.

-Não! No pneu de caminhão!?

-Nele mesmo, na frente de todo mundo, do padre, da menina do contorcionista e do major.

-Meu Pai... Pobre do pneu. E como ele ficou?

-Graças a Deus [Mais uma vez a tal britadeira, imagino que a pedra deveria ser bem dura] no sapato do major, bem em cima. Só por isso que ele ligou para o borracheiro.

-Que alívio Fraga, não tenho mais idade para essas coisas. Continua vai.

- Então a polp[A britadeira retornou, como alguém desenvolveu uma máquina tão barulhenta?] e todos os ministros simplesmente não tinham o que falar, ninguém poderia falar nada, com todo esse barulho da lava jato e tal, como alg[britadeira e um caminhão dando ré, com aqueles apitos estranhos] e ai Meireles, cada um cuida de si. O General tirou o corpo fora, não vou nem comentar o que o [agora eu espirrei, culpa minha] em todos os carros brancos com a placa iniciando em K.

-Fraga você tem noção do que está me falando? Sabia que isso pode atingir a economia mundial? Os satélites não tem [britadeira mais uma vez]

- [Britadeira continua, irredutível e soberba.] e no consulado, o pneu de caminhão foi colo[pedreiro marretando alguma coisa metálica]

-[O pedreiro continua]

-Foi nessa hora Meireles, que o embaixador turco sentou em sua cadeira, ofereceu um drink ao soldado e olhou direto para a filha do paciente do Tuco e disse: Chupa essa manga garota.

-Fraga... Eu... Não sei o que dizer. Precisamos fazer algo a respeito, porque se os tanques de fato estiverem sem combustível... Pode ser o início do fim.

-Mas e o padre meu amigo, se você fizer o que me propõe, como o padre Chico fica?

-Sacrifícios precisam ser feitos Fraga, é pelo bem maior. E nesse caso estamos sem escolha, ou o padre ou o Pneu de caminhão.

-Você me entende agora Meireles?

-Olha Fraguinha, eu te dou razão de se preocupar, mas você não pode perder sua paz por causa disso, a situação está fora da sua alçada, não depende nem de você nem do Tuco. Eu... Eu não posso prescrever nada, mas tenho um colega psiquiatra, vou ver se consigo uns ansiolíticos para você.

-Agradeço meu amigo, muito obrigado mesmo, você sempre teve a cabeça no lugar.

-Que isso meu chapa, precisando é só falar. Tira umas férias.

-Valeu Meireles, você sempre foi o melhor, preciso ir agora, acho tenho um paciente para daqui a meia hora.

-Tudo bem irmão, forte abraço.

Meireles desligou o telefone e veio até a janela. Apoiou-se no batente e respirou um pouco de ar para espairecer. Um carro branco cruzou a rua, a placa era “KUT” alguma coisa. Meireles gelou, um suor frio desceu pelo corpo. Dirigiu-se até o armário e pegou um frasco de um Bourbon Jack Daniels. Sentando-se, preparou uma soberba dose e sorveu até a última gota. Passou algum tempo contemplando seu copo, olhando como a luz do dia se dissipava através do cristal. Colocando o copo na mesa pegou o telefone da bancada e discou um número.

-Alô, professor Ricardo? Mestre... Preciso de uns conselhos.