POR UM SALTO ORNAMENTAL

Antes de iniciar minha história eu não poderia deixar de fazer uma confissão feminina: amo sapatos. Algum pecado sem perdão?

E claro, não sou só eu: a multidão de homens, mulheres e todas as demais diversidades modernas ...ama os tais dos acessórios mais idealizados do mundo fashion.

Dia desses, passando por uma vitrine deles, me deparei com uma publicidade que dizia mais ou menos assim: ”saí para comprar a felicidade e voltei com um par de sapatos”.

Penso que aquela frase foi inspiração freudiana...afinal, quem nunca vivenciou uma felicidade dessas que se compra?

Meu gosto pelos sapatos começou na minha família de italianos; alguns deles para cá imigraram do sul da Itália, e lá no início do ido século passado montaram uma pequena indústria familiar de sapatos feitos a mão.

A coisa cresceu dum jeito que e a família toda, culturalmente, passou a doutamente opinar sobre sapatos.

Minha tia Teresa, a mulher do tio Pasqualino, conhecedora profunda da arte do bem calçar e dona dum gênio exigente como ela só, dizia que se conhecia a elegância de alguém pelos pés bem calçados e eu aprendia, sem perceber, a degustar sapatos mais delicados, confeccionados em pelica legítima, bem costurados, com saltos elegantes, com “design” e conforto perfeitos.

Para o almoço dos domingos em família, -“ai de nós!”- crianças e adultos, se não estivéssemos devidamente acomodados num par de sapatos bem cuidado e feito sob encomenda pelas mãos da família...aquilo era como um nosso cartão de visitas aos clientes, concluo que sim.

Assim, ainda criança, eu conseguia meu exato número “32,5” sem folga,e que na vida adulta aumentou apenas mais meio ponto.

Destarte, logo cedo, tomei gosto pela arte de observar, analisar, e claro, calçar...sapatos.

Todavia, a coisa mudou um pouquinho de lá para cá.

Toda moda, para acontecer inédita, hoje tem que desafiar a si mesma, a sempre recriar algo paralelamente ao mais clássico e/ou ao mais esdrúxulo, mas nem sempre a conseguir manter a harmonia da elegância de outrora...

E quando o assunto é sapatos, a despeito de alguns pares exóticos e discutíveis que daqui andam por aí, nós brasileiros, a meu ver, hoje somos os campeões do mundo no bom gosto na confecção de belíssimos sapatos: modelos e alta qualidade da matéria-prima é conosco mesmo, e ponto final.

Compramos nossos próprios sapatos com grifes internacionais que nos exploram, ai ai ai!-é o glamour do caro inconsciente.

Então, dias desses começava essa minha crônica de humor sobre salto de sapatos.

Não há um lugar mais apropriado para se desfilar sapatos do que em encontros festivos, casamentos, aniversários, eventos mil, formaturas e afins.

De repente, ela, meio desequilibrada, rodopiou sobre o próprio eixo e esbarrou “justo” em mim, num frustro degrau da entrada da festa.

Levei um susto, e num reflexo diagnóstico de ajuda a impedi de despencar lá de cima...do seu quase salto ornamental vindo do seu próprio salto “ornamentalíssimo”.

Ali, em plena festa, senti que salvava uma vida em risco...ufa!

“Ah, muito obrigada, foi só um pequeno desequilíbrio!”- me disse ela, logo recuperada duma quase queda fatal daquele do seu pedestal móvel altamente inacreditável.

Não tenho com descrevê-lo na íntegra, dado ao alto grau de complexa excentricidade daquele seu salto excêntrico, com o qual ela desafiava tanto os usos e costumes como a física de Ptolomeu.

Andar sobre aquele palco e não perder o centro gravitacional da própria altura, de fato, não era fácil, merecia um texto alusivo e comemorativo AO EVENTO.

Digo que aquele andar era como recompor toda a lei da física sobre o equilíbrio dos vetores centrípetos da elegância feminina seguramente sustentável...a manter um corpo PERENEMENTE supino.

Calculo sem muito erro que seu salto, um perigoso palco ambulante, tinha uns vinte e cinco centímetros de altura por quinze centímetros de base, descontados já os centímetros de área da plataforma dianteira, algo rude que se chocava com a gaza fina e delicada da sua vestimenta de festa.

De fato, um desafio às leis da física postural da coluna vertebral, a não ser pelo fato de que a altura da pequena mulher era bem menor que altura da do seu pedestal , uma compensação lógica, todavia ainda perigosa.

Andar sobre aquilo urgia por se carregar um telefone de emergência na bolsa e um colar cervical de prontidão.

A plataforma do objeto andante inclinava tanto para a frente que pude enxergar por detrás da sua caminhada a etiqueta do preço daquele par de sapatos novinhos em folha, prontos para subir, numa emocionante trajetória de primeira viagem, a próxima escadaria dum palco real, a dar inveja ao melhor malabarista do SOLEIL.

Confesso que rezei muito e me aliviei ao vê-la deslumbrantemente equilibrada no seu salto, a subir a enorme escadaria, bem longa aliás, a que a levaria rumo à grande emoção daquele nosso momento comum.

Concluí que lá em cima chegou viva por ter sido salva a tempo de despencar em salto do próprio salto!

Ao ler, por debaixo do sapato, o preço da sua aquisição ornamental, fiquei impressionada com o quanto custa caro se “manter no salto” tão esdruxulamente, ainda mais nesses dias de crise.

Tempos de valores inacreditáveis...