“VERDADE VERDADEIRA” MINHAS HISTÓRIAS

Eu estava grávida do meu filho André e ainda morava em São Paulo, no bairro da Mooca.De repente tive um estrimilique danado, briguei com todo mundo e peguei minha moxila, descabelada de puro nervoso:

- Vou pra casa da mamãe !

E a “mamãe” não morava do outro lado da rua, não senhor.Ela vivia feliz da vida catando conchinha na praia do Perequê-Açu e fazendo caminhadas ao entardecer, bem longe das minhas lamúrias .

Mas não teve perdão.Fui até a rodoviária do Tietê com os olhos inchados de tanto chorar a minha desventura, comprando uma passagem só de ida para Ubatuba, litoral norte , aonde ela estava .

Acomodei-me sossegadamente na poltrona e fui tirando de um saco plástico as gororobas que adoro levar na viagem; batata frita, refrigerante, bala de goma, bolacha recheada ...

Dormi, acordei, funguei...A minha vida foi passando feito um filme diante dos meus olhos e quanto mais eu pensava, mais chorava ...O velhinho que estava sentado ao meu lado me encarava olho no olho, doidinho para que eu começasse a contar sobre minha vida .Fofoqueiro! Porém me contive, nas minhas eternas lembranças ;

era o sogrão muquirana , o marido assanhado, aquela barriga que não parava de crescer ...Caracas, que amargura!

Foi quando o ônibus parou na cidade de Paraibuna e eu desci feito um pato louco, indo direto para a lanchonete .Pedi um hamburger no capricho e enquanto meditava com os meus botões, ouvi alguém anunciar que o ônibus tal estava de saída .Na hora não pensei em nada !

Corri para o estacionamento e entrei com tudo, bufando e me acomodando na poltrona do lado da janelinha .

Continuei a mastigar o lanche, lembrando de todos os motivos que estavam me levando para bem longe de casa ...

Ao procurar a cara daquele velhinho intrometido, percebi que ele não estava mais ali :

- Esta mala ficou para trás ! Melhor assim.

Só que quando resolvi molhar o bico com o meu suco de laranja, cadê a minha mochila? Tinha sumido também.

O meu coração quase explodiu .Olhei pra um e pra outro ;a minha mochila, o velhinho ...Soltei um grito que quase rachou o ônibus ao meio :

- Socorro ! Fui roubada ! Socorro !

Eu chorava e gritava ao mesmo tempo .Levantei-me rápido, indo ao lado do motorista :

-Moço, por favor, pare este ônibus .Fui assaltada !

O pobre homem não acreditou; cuidadosamente foi para o acostamento, desligando o motor:

-Gente, ninguém sai daqui enquanto não devolverem as coisas da moça ...Coitada, ela tá gestante !

Uma mulher me abraçou enquanto eu soluçava no seu peito.

-Que sacanagem! – resmungava um gordo .

-Este é o mundo em que vivemos ...- dizia um rapaz de óculos .

Nisso lembrei-me do velhinho:

-Gente, já sei.Aposto que foi um velhinho muito esquisito que tava sentado do meu lado .Ele sumiu também...- funguei.

Que velhinho?! Ninguém tinha visto o dito cujo.

O motorista decretou:

- Se a mochila da moça não aparecer, vamos todos para a delegacia agora !

Me deram água gelada da garrafinha, biscoito de polvilho, bombom recheado ...

-Que velho safado ! – gritavam .- Daonde saiu este picareta? Coitada da mulher .Roubar a bagagem, é forçar a amizade...

-Só sei que ele entrou comigo na rodoviária do Tietê ...

Tietê ? Pera lá .Todo mundo se olhou, estranhando:

-Mas a gente tá indo pra São Paulo agora .

Minha ficha foi caindo ...

-Como pra São Paulo se eu tô indo pra Ubatuba?!

O pessoal fechou a cara .O clima ferveu e aí percebi que havia sido vítima da minha distração: na cidade de Paraibuna havia entrado no ônibus errado .

Que mico! Todo mundo não parava de reclamar:

-Seu bicho doido .E ainda queria por culpa no pobre velhinho! Sem chance, motorista! Deixa esta louca aqui mesmo pra deixar de ser fofoqueira ...

Quando me vi sendo enxotada , humilhada e discriminada, revirei os olhinhos fingindo um desmaio :

-Oohhh, estou zonza, zonza !

Me colocaram de volta dentro do ônibus e enquanto uma mulher me abanava, o motorista corria feito louco para me devolver na rodoviária de Paraibuna .Abriu a porta e desci a rampa feito uma bola de canhão .O meu ônibus continuava no mesmo lugar, os passageiros estavam do lado de fora e o velhinho segurava a minha mochila, todo preocupado .

-Olha ela lá .- Gritou .- Eu sabia que você tava em algum lugar, dona ! Aposto que tava no toilette ...

-Isto mesmo, lindo .Tava com enjôo. Obrigada, viu?

-Fui eu que percebi a sua falta e pedi pro motorista dar um tempo ...

- O senhor é um fofo.Logo vi quando entrei no ônibus.Um homem simples, mas gente de bem .

Assim acomodei-me confortavelmente na minha poltrona, acenando para as pessoas do outro ônibus , enquanto tinha um acesso de riso e de choro ao mesmo tempo!

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Quando comecei a trabalhar no Posto de Saúde da Vila Maria como recepcionista,parecia um desenho animado ! Não tinha experiência nenhuma e pagava o maior mico, achando mesmo que tava abafando .

O Posto de Saúde havia se transformado num pronto atendimento e o número de pessoas que ali chegava era enorme, muitas vezes dando entrada com óbito .

Numa tarde o meu chefe me avisou que havia chegado o corpo de um homem eletrificado , totalmente torrado, já morto. Só que este detalhe era ético e em breve a sua família iria nos procurar , sem saber que o fulano já se encontrava no paraíso das minhocas.Esta triste notícia deveria ser dada pelo médico de plantão.

Meu cabelo quase caiu, tava assustada com tudo aquilo !

- Mas você não deve e não pode dizer nada...Quando chegar a esposa do falecido, apenas me chama, tá bom?

E você acha mesmo que eu ia perder esta boquinha?! Eu queria estar dominando a situação , feito uma reporter global.

Primeiro, espalhei pra todo mundo que ali dentro tinha um “cadáver”, organizei um revesamento entre as amigas para irmos ver de perto e fui várias vezes até a salinha onde ficavam os defuntos apenas para espiar o presuntão .Pé ante pé, olho no olho...Eu tremia feito taquara !

Era um homem meio “coroa”, mas não dava para ver muita coisa porque ele tava coberto por um lençol branco .

- Coitado. - choraminguei , voltando para a recepção totalmente “passada”.

A fila de usuários tava enorme e quando observei perto do portão de entrada tinha uma mulher chorando, com as mãos tapando o rosto, num desespero de dar pena .

- Ai, ai, quanta dor ! – gemia num suspiro.

Lógico, só podia ser a dor da perda .

Eu precisava entrar em cena; mostrar serviço .Mais que depressa corri até ela, tentando ser discreta .

- Então a senhora já sabe ...- sussurrei no seu ouvido – Mas foi uma morte rápida .Acho que ele nem sofreu ...

- Como assim?! – me encarou, estralando o olho feito uma luneta cósmica .

- Pobrezinho, morreu ...pum...Tá todo torrado! Nem dá pra ver direito a sua cara .- e comecei a chorar também:- Vocês eram casados há muito tempo?

Nisso ela soltou um grito, me chaqualhando os ombros:

- Quem morreu?! O Antônio, meu marido ?!

- Era Antônio o nome dele? O nome do meu tio Nunu ...Coitado , tava pendurado no poste ...

- Mas como?! Eu falei com ele quase agora...

- Pois é, a vida é assim...Vamo lá pra dentro que eu te mostro aonde ele tá ...Vem! Seja forte .Tinham filhos?

Segurei o braço daquela mulher que já soluçava alto , chamando a atenção de todo mundo .

Não pensei duas vezes, lhe acompanhando até a salinha dos fundos .Parei na entrada com lágrimas nos olhos, enquanto ela se aproximava do defunto, lhe descobrindo o rosto, em desespero :

- Mas , moça, este não é o Antônio ...Cadê o meu marido?

Como não era ? Deveria estar muito desfigurado mesmo...

- É porque ele tá tostado ...- expliquei- Olha direito!

Ela encarou de frente aquele presuntão , chorando e rindo ao mesmo tempo :

- Não é o Antônio, não .Que brincadeira é esta? Eu vim até o posto de saúde com uma baita dor de dente, mal conseguindo parar em pé e você já logo me veio com esta história ? Cadê o Antônio ?

Epa, dor de dente? ! E agora, tava “frita”?! Então , pra disfarçar o meu terrível engano, lhe abracei em prantos:

- Graças a Deus que não é o Antônio , minha senhora.Isto é motivo para ficar feliz...Não pra brigar ! Calma !

Nisso o meu chefe que já tava sabendo daquela confusão toda, me chamou num canto , me arrancando a pele com a unha.

- Eu só queria ajudar ! – resmungava .

E foi assim que por um triz não me enterraram junto com aquele presuntão torrado ! Jurei pra mim mesma que nunca mais iria abrir a minha boca “maldita” pra nada, porque com certeza só dava bola fora .Não podia ser o Antônio? Caramba!

Silmara Retti