FRITANDO A VOVÓ
E mais uma vez o fato seria inédito.
Ali , naquele ambulatório onde mal acabara de começar o dia, logo observei que o doutor João já vivenciaria uma daquelas suas histórias “em família”, e claro, aquela seria mais uma que mereceria o meu registro pontual nesse espaço.
Como de praxe, super companheiros, sempre vinham em três para a consulta de apenas um: a paciente, a mãe da paciente(a avó!) e o filhinho da paciente, de seis anos, portanto, o neto da avó, a princípio, um garotinho cismado, pouco falante, que só olhava carrancudamente para o doutor João, desconfiado de que aquela história pudesse terminar nele..
Então, fluiu o seguinte diálogo:
-Bom dia, como passaram todos? E o seu “ refluxo”, melhorou com a medicação e com a dieta?
-Ah,doutor, quase nada! Tudo que eu como... retorna.
-Fez tudo direitinho?
-Tudinho como o senhor mandou, né mãe?
-Sim doutor, sou eu quem cozinha lá em casa...tudo nos "conformes".
Cozinho tudo bem leve, natural, sem industrializados!
-Nada frito, tem certeza?-perguntou o médico.
-Nada doutor, imagine, tudo natural, como senhor mandou. Ou cozido, ou assado, ou grelhado. Em casa nada de frituras!
-E as pizzas, massas, chocolate, álcool , cigarro, café, tudo excluído como orientei?
-Tudo doutor, mas parece que não melhoro mesmo. Mastigo devagar, sem líquidos nas refeições, durmo inclinada... e nada!
De repente, enquanto o doutor examinava, o garotinho num ímpeto de coragem espontânea confessou:
-Sabe ô moço, ela só come bolinho de chuva o dia todo...e é a vó que frita pra gente!
-Não doutor,(fica quieto, ô menino!) eu só faço de vez em quando e
-vixi!- faz tempo que eu não faço bolinhos de chuva lá em casa...nem lembro quando que fiz...
-Mas vó, lembra?-cê fez ontem pra nós, um montão, né mãe!?
Sim... poderia ser um caso de Alzheimer começando, a perda da memória assim, de forma tão recente!
Mas o caso em questão era de refluxo gastro esófágico.
E de repente, doutor João sentiu chover bolinhos ali na sua sala, via memória tardia.
Até sentiu aquele gostinho de infância, de canela com açúcar cristalizado a borbulhar no óleo, a desmanchar na boca...
Contemporizou.
Bem, de fato, criança não mente nem esquece, tem memória fresquinha, e depois dos tantos dados pormenorizados em meio à gargalhada conjunta, Zezinho quis saber, afinal, qual era aquela piada do dia.
Ficou vermelho de vergonha e se encabulou num canto.
Ele não suporia, mas acabara de fritar a mãe e a vó na panela dos causos perdidos...os das receitas desandadas.
Obviamente que não a deliciosa receita dos bolinhos, isso estava mais que claro.
E doutor João entendeu que ali era só ele quem, de fato, sempre choveria no molhado.
Nota: verídico.