QUANDO FREUD “DESPULA A CERCA”

Ela vinha ali, pela primeira vez, apenas para falar.

Precisava falar tanto quanto precisava de alguém para ouví-la.

Ocorreu que naquele dia o clínico doutor João voltava de férias e, diante de tantas “urgências” acumuladas, o tempo não lhe estava a favor de grandes audições, todavia, mesmo assim ele a ouviu com bastante atenção.

-Doutor, tô mal demais dos nervos e tomo todos esses remédios...

Como de praxe ali ocorria, ela despejou sobre a mesa do médico uma sacolinha com vários medicamentos manipulados, de uso contínuo e de receituário especial.

-Tomo três desse pela manhã, dois desse no almoço e quatro desse para dormir.

-A senhora tem um diagnóstico feito?-perguntou o médico.

-Tenho sim senhor, há 20 anos: depressão incurável, sem chance alguma.

-Sim, ahã, incurável, ok, e quem lhe acompanha?

-Meu psiquiatra que sumiu!

-Como assim , sumiu?

-Desistiu de mim, doutor João. Ele me avisou várias vezes que iria sumir um dia...e um dia sumiu.

-Não, isso não deve ser possível, senhora...

-É sim, ninguém me aguenta, doutor.Ele também não me aguentou.

Então, relato que o doutor João, aquele meu amigo paciencioso e de bom coração,embora não fosse aquele “ presente” caso para a sua área de atuação, mesmo assim ele resolveu ouvi-la melhor diante de tanto desespero desprezado.

Senti que ali lhe estava um grande desafio profissional de “agüentar” aquele mesmo “desafio” cujo seu colega –realmente!- poderia não ter aguentado. E com certa razão.

Então, doutor João minuciosamente começou sua investigação anamnéstica:

-A senhora teve algum “start” depressivo, digo, alguma coisa aconteceu que lhe marcasse profundamente o início da sua doença?

-Xi..... doutor, a vida toda tive, posso contar minha vida toda?

Bem, vi doutor João se remexer no relógio e , mesmo educado, não se arriscou muito no tempo:

-A senhora conseguiria me fazer um rápido resumo do mais importante?

-Um resumo bem rapidinho da importância desde que nasci, doutor? Pode ser?

-Sim, resuma bem resumidinho que tem muita gente lá fora a me aguardar, ok?

E ela resumiu a vida “minutos e minutos a fio” até que, milagrosamente, fez uma síntese perfeita.

-Doutor, o problema é meu pai. Desconfia que sou filha dum pulinho de cerca lá de trás, ocorrido na adolescência da minha mãe, e acredito que, por isso, eles também nunca me aguentaram. O senhor sabe, pular a cerca é um caso sério...traumático.

O caso, deveras, era delicado.

Senti que o doutor João depois de ouvir toda a “constelação “ dos problemas das “cercas abertas do tempo” resolveu aventurar na sua pesquisa:

-Mas...alguma vez a senhora considerou a possibilidade de não ser filha biológica do seu pai?

E a surpresa da revelação:

-Doutor, olha pra mim! Olha pra mim doutor! Pelo amor de Deus, presta mais atenção nos seus pacientes, doutor! O meu pai era um homem demais de feio! Tinha pernas tortas, olhos desviados , nariz comprido, orelhas grandes, um cabelo todo emaranhado, doutor, meu pai era um cabra danado de chato, olha pra mim! Está me olhando bem? Olha doutor, com os olhos bem abertos!

-Sim, minha senhora, estou lhe olhando sim, não vejo nada demais na senhora, qual o problema?! –perguntou o médico com os olhos bem arregalados nas sua inspeção profissional.

-O senhor percebe? É sempre assim! Todos acham que não tenho problema algum!

-Se percebo o quê, senhora? Pelo Amor de Deus, afinal,qual é o seu problema que não vejo?!

-E o senhor ainda me pergunta? Sou a cara do meu pai, doutor! Igualzinha a ele em tudo! O senhor não vê?! Até a pinta do nariz dele eu tenho! O senhor consegue me entender agora?

Doutor João, realmente irritado, engoliu seco, e quase também não aguentou aquela situação insólita. Mesmo na invisibilidade, acabara de enxergar o pai daquela sua paciente, na marra!

-Assim, desse jeito tão incisivo, a senhora me distrai do meu raciocínio. Estou confuso...Eu não acho que a senhora seja a cara dele.

-Como não? Doutor, me olha!-o senhor quer dizer que não sou filha dele? Se o senhor nem o conhece!

-Claro que não quero dizer isso! -retrucou o doutor João ainda tentando ser simpático- é que...estou confuso mesmo, porque a senhora é uma senhora tão bela, tão elegante...

Saiu o doutor pela tangente do problema.

-O senhor acha isso mesmo? Então por que ninguém me vê? Por que ninguém, ao menos, nem me aguenta?

-Claro que a senhora não é a cara dele! É só sua impressão! A senhora interiorizou sua aparência de maneira inconsciente e doentia! Agora tenho certeza disso! Freud já explicou cientificamente o seu problema! Aguarde! Depois que a senhora colocou tudo para fora agora sim vai ficar mais leve, inclusive para as pessoas ao derredor.

Todos deverão aguentá-la daqui pra frente, acredite!

-Doutor, acho que o senhor me curou , muito obrigada, já me sinto mais leve mesmo.Mas se acontecer de novo de não me agüentarem posso voltar a lhe procurar, qualquer hora do dia ou da noite?

E assim, graças a Deus e a Freud, aquela senhora se foi, certa de que a tal “cerca fechada” era um capítulo a ser “pulado” definitivamente na sua vida.

E diante de tal revelação...doutor João entendeu toda a problemática daquele problemão de depressão, inclusive o da sua profissão:

Às vezes é PRECISO CORAGEM para enfrentar o que não se aguenta...para só depois poder finalmente aguentar...

Ato contínuo, o doutor me disse que rezou pelo seu colega psiquiatra, aquele que, de tanto não aguentar, um dia resolveu se mandar.

Ah sim, e agradeceu à luz freudiana que lhe acendeu bem a tempo de ele também não aguentar mais nada!

Nota: Bem Verídico.