Eu quero um carro,papai!

Os gregos acreditavam que o sol era,na verdade,um grande carro celeste puxado por cavalos voadores.Todos os dias,o deus Apolo saía de um palácio dourado guiando o flamejante veículo pelos céus levando luz e calor para a terra.

Certo dia,Apolo recebeu a visita de Faetonte,fruto do seu romance com a ninfa Climene.O jovem,encorajado pela mãe,resolvera ir atrás do pai.

Depois de ter sua origem celeste ratificada,o garoto recebeu um presente:o deus atenderia a qualquer pedido seu.

Prepotente,o mancebo desejou guiar o carro celeste naquele dia.Apesar das advertências do pai,Faetonte não recuou.

Para não alongar muito a introduçâo serei direto:o jovem,obviamente, não conseguiu guiar o carro,pois os cavalos sentiram falta da condução segura de Apolo e saíram da rota.O veículo,então,voou ora muito longe,ora muito perto da terra,quase icinerou tudo e por pouco não secou os rios,lagos e oceanos.

Zeus,horrorizado com a tragédia iminente,derrubou Faetonte do carro com um raio,decretando a morte do infeliz.

Melissa não tinha a pretensão de guiar o carro do sol,um fiat uno já estaria de bom tamanho.

Apesar de seus 19 anos recém completos,a moça não havia conseguido ainda convencer o pai,um português das antigas,que reunia condições suficientes para guiar um automóvel pelas ruas do Rio de janeiro.

__Isso é ridículo!Sou a única na "facu" que não ganhou um carro!__protestou a moça,abrindo os braços alvos sobre a toalha creme da mesa.

Manoel olhou para a jovem,que herdara seu jeito explosivo de falar,e respondeu:

__Você não é igual as outras.

__Sou uma princesa que não pode sair sozinha por acaso?Tenho que ter escolta armada?

__Deixa de ser dramática,menina!__interveio a mãe,enquanto colocava a travessa com o frango na mesa.Era domingo;dia de frango caipira.

__Dramática?Eu passei em todas as provas teóricas e práticas do curso de direção!Já possuo a carteira!O que mais eu tenho que provar?A Marilú nunca passou por isso!

Marilú era a irmã mais velha,xodó do pai e,na opinião deste, guardiã das tradições familiares.

__Não vai dizer nada?__insistiu Melissa

Manoel não respondeu;apenas pegou uma ante coxa de frango,três batatas coradas,um pouco da salada de alface e muita farofa.Após degustar metade do prato,limpou os lábios com um guardanapo,encarou a filha e disse:

__Vou tirar uma soneca de hora e meia__bebeu um pouco de vinho__Quando acordar,vamos dar uma volta de carro por aí,você dirigindo.Se eu aprovar o seu jeito de guiar te dou um carro.Combinado?

__Combinado!__respondeu Melissa,surpresa com a proposta.

Depois que o pai foi dormir,a jovem perguntou:

__A senhora é a responsável por isso?

A matriarca,que lavava os pratos,desligou a água da torneira,virou-se para Melissa e respondeu:

__Eu não te disse que era só ter paciência?Demorou um pouco mas eu consegui convencer seu pai... Essa é a sua chance!

Melissa,sem jeito,chegou perto da mãe:

__A senhora não teria um daqueles seus calmantes?É que eu estou um pouco nervosa...Não esperava por isso hoje.__e riu um riso nervoso.

A matriarca enxugou as mãos e fez um gesto para que Melissa esperasse.Saiu da cozinha e retornou pouco tempo depois.

__Toma__colocou um comprimido na mão da filha.

__Obrigado mãezinha__a jovem agradeceu e tomou o ansiolítico com água.

Um pouco mais tarde,dentro de um bravo cinza,pai e filha dobravam a esquina da rua de casa rumo a avenida principal.

Quarenta minutos depois,a primogênita,que passara a noite na casa da amiga, abria o portão da garagem e entrava com seu ford fiesta novo em folha.

__Cadê o pai e a mana?__perguntou, ao ver a mãe sentada numa poltrona da sala tricotando um suéter.

__Seu pai está avaliando a Melissa na direção.

__Já era hora!__Marilú jogou a bolsa da Vitor Hugo no carpete e esparramou-se na poltrona maior

__Cuidado para não furar o estofado!__advertiu a mãe,olhando por sobre os óculos.

__Pode deixar!Tirei as chaves do bolso da calça!

__Bom..A propósito;sua irmã me pediu um calmante.Os meus tinham acabado e peguei um dos seus...

Marilú empalideceu,arregalou os olhos e disse:

__Aonde a senhora pegou o comprimido?No meu armário ou no criado mudo?

__No criado mudo.Estava naquele porta comprimidos azu...

__NÃOOOOO!__gritou a moça__Aquilo não era calmante!

__Era o quê então?__a mãe abaixou as mãos sobre as coxas bruscamente,quase se ferindo com as agulhas do tricô..

__Lembra daquela festa na casa da Jurema,ano passado?

__Como eu poderia esquecer!Você bebeu demais e arrumou confusão,brigou e tudo;quase foi parar numa delegacia,tive que sair daqui sem falar nada para o seu pai e ir te pegar lá.Te levei para a casa da sua tia Mirtes atér passar a bebedeira...

__..Mas o que a senhora não sabe até hoje__confessou__ é que o problema foi eu ter misturado bebida com ...Pílulas!

__Que tipo de pílulas?

__..Estimulantes..Bolinhas..Para dar uma turbinada na balada,entende?

__Não entendo não!Mas o que isso tem a ve...Não!__colocou as mãos na cabeça__Não me diga que eu dei isso para a sua irmã!!!!Jesus,Maria,José!!!

__Não vamos nos desesperar__ponderou__Talvez o comprimido não afete tanto a Melissa...Tenho uma colega que não sente nada quando toma bolinha,fica até com sono...

__..Mas que vergonha!__revoltou-se a mãe__Uma jovem instruída como você usando essas coisas!

__Mãe;com a cobrança do pai em cima de mim,se eu não aloprar de vez em quando vou pirar!

__Pira nada!Isso é falta do que fazer!Falta de trabalho!Na minha juventude não se ouvia falar disso e ninguém pirava!Eu acho qu..

A porta da sala abriu-se, interrompendo o sermão. Manoel entrou esbaforido.Sozinho.

__Cadê a melissa?__perguntou a mãe.

O homem sentou na cadeira que estava mais próxima e falou:

__Me traz um copo cheio de ponte de amarante.Por favor.

__Você vai beber agora?__mãe e filha falaram quase ao mesmo tempo.

__Sim.Ou eu bebo ou vou ter um troço.

__Por quê?__perguntou a mãe,ao mesmo tempo em que colocava as agulhas e o suéter em cima da mesa__O que houve...Quer dizer;onde está a Melissa?

O patriarca não falou nada.Marilú foi até a grande arca de madeira de lei,vinda de Portugal,encheu um copo da aguardente e deu ao pai,que tomou quase tudo de um gole só.

__Só isso para acalmar minhas idéias...

__Manoel!Quer me dizer logo o que aconteceu!__implorou a mãe

O português enxugou os lábios com o dorso da mão direita,tossiu,e depois falou:

__Mayara,minha esposa;vou lhe contar tudo:no início eu estranhei o jeito da Melissa dirigir,ela estava indo rápido demais e quase bateu na traseira de um ônibus;tive de gritar:"FREIA!FREIA!".Depois,um motoqueiro passou e esbarrou de leve no nosso retrovisor;ela xingou o cara de todos os palavrões imagináveis...

__E o motoqueiro?__quis saber Marilú,visivelmente nervosa.O pai continuou:

__Ficou tão assustado que foi embora...Aí veio o pior.

__O que...__a matriarca colocou a mão direita na boca

__Aquele ex-namorado dela,o Valtinho,parou ao nosso lado num sinal;quando a Melissa viu que ele estava com uma moça ruiva no banco do carona...__bebeu o resto da aguardente

__Fala homem!Fala!__o desespero era evidente na voz de Mayara

__Primeiro ela xingou o Valtinho de todos aqueles nomes e mais alguns novos...Depois,aos berros,falou que nenhuma mulher daria o prazer que ela deu a ele,não..__soluçou__...faria gostoso como ela...Que vergonha,meu Deus!Que vergonha!

__Ora pai,não exagera!__minimizou Marilú__Ela só estava botando para fora a revolta,isso faz bem;não tinha ninguém conhecido ali para espalhar..

__Tinha sim__Manoel levantou-se e foi até a arca pegar mais bebida__O Lindimar,meu irmão maçon,estava no carro logo atrás de nós...serei desmoralizado na próxima reunião da loja...Que vergonha!Já posso até ver os irmãos comentando sobre a minha filha devassa...

__Onde está a nossa filha,Manoel!?Fale de uma vez!

Manoel bebeu mais alguns goles,enxugou de novo a boca com o dorso da mão direita,suspirou e respondeu:

__A levei para a casa da sua prima Mirtes.Era o lugar mais próximo.Não queria me arriscar com ela na rua para dar mais vexame....Agora eu vou dormir...Para esquecer essa vergonha!E pensar que o meu tio-avô,um padre da ordem salesiana,foi um dos oradores de Portugal na posse da rainha da Inglaterra...que decadência!

Arrasado,o português foi para o quarto,e as duas,mãe e filha,para a casa da Mirtes.Chegando lá,a Mayara teve de ouvir o sarcasmo da prima:

__Decididamente você não soube criar suas filhas.O Manoel estaria muito melhor comigo...Por sinal,achei ele meio magrinho.Você ainda não aprendeu a cozinhar direito?

__Ele decidiu casar comigo,Mirtes!Há mais de trinta anos atrás!Não é possível que você ainda não tenha aceitado isso!Cadê minha filha?

__No quarto dos fundos;eu dei um calmante para ela.

Quando entraram no aposento,que estava na penunbra,as duas encontraram Melissa deitada de bruços com a cabeça enfiada no travesseiro.Ao virar-se,a moça falou:

__Mãe,eu não sei o que deu em mim...Quando vi o Valtinho com aquela ruiva..

__Não se preocupe filha,isso acontece.Agora se arruma que nós vamos te levar para casa.

__Eu acho que não vou ganhar meu carro..

__A gente dá um jeito nisso mais tarde...__enquanto falava,a mãe acariciava o rosto da jovem

Minutos depois,fora do quarto,Marilú,temerosa,perguntou:

__Mãe;é melhor não contar a história da bolinha...O papai vai acabar sabendo e a minha viagem para a Austrália não vai acontecer.

Antes que a mãe respondesse,Mirtes aproximou-se e as duas interromperam a conversa.

__Deixa ela dormir aqui hoje.__disse a tia__seu hálito fedia a malboro e cerveja barata.

__Obrigado pela oferta,prima;mas não vai ser necessário.Ela já está mais calma

__Você é quem sabe...__a parenta deu um risinho malicioso e levou o cigarro a boca.Seus dedos eram horrivelmente amarelados.

Pouco tempo depois as três deixavam o local.Mayara quase sentiu pena ao ver a ex-rival pelo retrovisor.Mirtes apoiava as costas no muro da casa e pitava seu cigarrinho.A perna direita estava dobrada de modo que a sola do pé__descalço e sujo de poeira,diga-se de passagem__ficava apoiada sobre a parte frontal da coxa esquerda,o que levantava a saia horrível que usava,revelando varizes multicoloridas.Para completar o quadro funesto,um vira latas pulgento passou,abocanhou a sandália havaiana que estava no chão e saiu correndo,sob os xingamentos da coroa.

Assim que parou de escutar os gritos de Mirtes,a matriarca dirigiu-se à filha mais nova,encolhida no banco traseiro do carro:

__Melissa,a culpa de tudo isso é minha!Te dei por engano uma bolinha da Marilú.__e emendou logo em seguida__Sua irmâ não teve culpa de nada!

__Eu te falei que aquelas bolinhas eram perigosas,não falei Marilú?__a caçula esboçou um início de discussão,levantando a cabeça e a voz.

__Não quero briga na nossa família!__interrompeu a mãe__Não se preocupe,Melissa;você vai ter o seu carrinho.

__Mas o papai não vai aceita..

__Filhinha__Mayara virou o rosto para trás___Não há nada que uma boa chave de coxa na cama não consiga!Fique tranquila!Por que vocês acham que ele casou comigo e deixou a Mirtes?

__Mas também;a Mirtes é um bagulho...__Caçoou Marilú.

__Hoje!Vocês podem não acreditar,mas a Mirtes era,há trinta anos atrás,uma das moças mais bonitas do bairro!

__O que aconteceu com ela,então?__perguntou Melissa,sentindo-se um pouco melhor.

__Sempre mantenham a auto estima,minhas filhas,não esqueçam desse conselho da sua velha mãe!

__Velha,mas que ainda dá um caldo!__riu Marilú

__Com certeza__riu também Mayara,enquanto acelerava o carro rumo ao sagrado lar.

Melissa teve mais sorte do que Faetonte.

Isso foi coisa de Hera.