Os Soldados da Liberdade de São Luís do Maranhão

São Luís do Maranhão, Patrimônio Cultural da Humanidade, tem recebido, ao longo do tempo, vários cognomes, a saber: Atenas Brasileira, Cidade dos Azulejos, Ilha dos Amores, Ilha Rebelde etc.
O apelido “Ilha Rebelde” teve a sua origem no verdadeiro clima de guerra que viveu São Luís no ano de 1951 - em virtude da rejeição popular ao governador eleito, Eugênio Barros - que motivou intervenção federal e tropas do Exército nas ruas.

Numa cidade de tradições oposicionistas, o povo sentia-se frustrado porque o candidato de sua preferência, Saturnino Belo, havia morrido antes de serem concluídas as apurações e o TRE proclamara Eugênio Barros, o candidato do Governo, governador do Maranhão. Saturnino Belo já estava quase eleito, quando o partido do governo, valendo-se da liderança política do senador Vitorino Freire, conseguiu anular, junto ao TRE, mais da metade dos votos de São Luís e impugnar centenas de urnas dos municípios onde o candidato oposicionista fora bem votado. Por causa dessa manobra política, Eugênio Barros, o candidato da situação, passou para o primeiro lugar, com 30 votos à frente de Saturnino, o qual, dias depois, morreu subitamente. A comoção pública por sua morte aliada à revolta contra a fraude eleitoral exacerbaram os ânimos populares.

São Luís, antes pacata e ordeira, transformou-se numa praça de guerra por duas semanas. O TRE diplomou Eugênio Barros governador do Maranhão. A revolta cresceu mais. As residências dos juízes do TRE foram apedrejadas e a cidade se inflamou toda. Os partidos que formavam as Oposições Coligadas convocaram o povo – os "Soldados da Liberdade" - ao motim popular, prometendo-lhes as armas necessárias para marcharem contra o Palácio do Governo e retirarem de lá, à força, aquele que eles consideravam usurpador do cargo de governador. A Praça João Lisboa virou Praça da Liberdade e um sobradão colonial, o quartel general da revolta.

Diariamente servia-se uma feijoada e se distribuíam cigarros ao povo reunido na Praça João Lisboa enquanto os políticos oposicionistas proferiam exaltados discursos. O lugar, portanto, vivia cheio de "Soldados da Liberdade" dispostos ao sacrifício das próprias vidas para que a vontade popular prevalecesse. Para evitar a anunciada invasão, a Polícia Militar entrincheirou-se à frente do Palácio do Governo, e a ordem era atirar no primeiro que ultrapassasse uma certa área, logo batizada pelo povo como “Paralelo 38”, numa alusão à Guerra da Coréia que se travava na época entre americanos e norte-coreanos. Escaramuças já tinham ocorrido entre a Polícia Militar e populares, resultando em mortos e feridos. Os policiais tinham ordens de dissolver à bala qualquer massa popular ameaçadora.

Eu tinha 10 anos quando essa rebelião popular - que ficou conhecida como “A Greve de 1951” - ocorreu e guardo na minha memória algumas histórias que os jornais não contaram...

Num desses dias, eu e o meu irmão mais velho, José, estávamos lá, junto com a multidão, escutando os inflamados discursos. Eu, esperando a feijoada, José, os cigarros... Um deputado oposicionista discursava, exibindo um rosário de balas:

- Bravos Soldados da Liberdade! A vontade do povo será defendida até a última bala! Estamos aguardando a chegada das armas e então marcharemos contra o Palácio do Governo! Fora, Eugênio Barros!

- Fora, Eugênio Barros! – repetia o povo, freneticamente.  De repente, uma caçamba de recolhimento de lixo parou a uns duzentos metros da multidão, coisa que ninguém percebeu por causa do alarido popular. E enquanto os garis faziam silenciosamente o seu trabalho, o povo cantava o Hino Maranhense:

“Entre o rumor das selvas seculares,
Ouviste um dia no espaço azul, vibrante,
O troar das bombardas no combate,
E, após, um hino festival, soante...
.......................................................”

Nesse momento, um dos garis, de cima da caçamba, deixou escapulir das mãos uma lata vazia que bateu no chão estrepitosamente. Ouvindo o barulho, que o medo tornou semelhante a uma rajada de metralhadora, alguém gritou:

- É a polícia! Lá vem bala!

Vocês já viram um estouro de boiada? Pois aconteceu algo semelhante na Praça João Lisboa! Um salve-se-quem-puder dos diabos! Sapatos, bolsas, guarda-chuvas tudo foi deixado para trás na correria desabalada! E dizem que o primeiro a escafeder-se foi o bravo líder oposicionista que mostrara o rosário de balas à multidão...

Alguns dias depois, um doido folclórico, de apelido “Bota-Pra-Moer” (assim apelidado, porque, quando estava em crise, batia com a cabeça nas paredes ou nos postes) aproximou-se da multidão excitada e gritou:

- Tem algum cabra macho aí que queira se juntar comigo para invadir o Palácio agora e tirar de lá Eugênio Barros, vivo ou morto?

Todos se ofereceram. E, de repente, muniram-se de facas, facões, pedras, paus, galhos de árvores e, sob o comando de Bota-Pra-Moer, que empunhava uma rota Bandeira Brasileira, rumaram para o Palácio do Governo, cantando o Hino Maranhense. E a turba enfurecida, aos gritos de “Fora, Eugênio Barros!”, foi avançando, arrebanhando voluntários em cada esquina...

Mesmo morrendo de medo, eu caminhava junto com o povão, já me sentindo um herói, pois não tinha nenhuma dúvida de que a coragem daquela gente era realmente poderosa e irresistível. Dentro de poucos minutos, com certeza, ainda que muitos caíssem, varados pelas balas da polícia, estaríamos lá dentro do Palácio do Governo.  Mas, de repente, ao avistar o Paralelo 38 e a Polícia Militar entrincheirada, Bota-Pra-Moer voltou-se para o povo e perguntou:

- E agora, quem vai na frente com a Bandeira?

E acrescentou, com uma gargalhada:

- Sou doido, mas não tanto... Sou Bota-Pra-Moer, não Bota-Pra-Morrer!...

E porque os "Soldados da Liberdade" também não o eram, voltaram todos murchos para o quartel-general para esperar pelo que realmente interessava, isto é, a feijoada e os cigarros...


Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 17/06/2007
Reeditado em 22/03/2011
Código do texto: T530804
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