O Conclave

O velho cardeal recebeu o último voto. Sentia as juntas doloridas, mas sabia que precisava terminar o serviço. O mundo, afinal de contas, estava aguardando por um novo Papa. Leu a cédula, e finalizou a votação.

- Que Sua Eminência, o Cardeal da Inglaterra, se apresente.

Um surpreso cardeal inglês se ergueu. Chegou a ser empurrado em direção ao púlpito. Claramente aquela não era uma posição desejada, mas infelizmente era necessária, principalmente naquele período negro para a fé cristã que era esse início de milênio. Além disso, o próximo Papa teria como concorrente forte a imagem carismática do antecessor. Era como ser o último a se apresentar em um Concurso de Talentos, logo depois de um mágico. Nunca iria agradar.

O inglês sentou-se na cadeira em frente ao púlpito. Um bispo cansado aproximou-se. Em suas mãos, sobre uma almofada de veludo, o Chapéu. Se assemelhava a um chapéu de Papa, mas era velho e gasto. Também era a última prova.

O chapéu foi colocado com reverência sobre a cabeça do candidato, e um silêncio sepulcral se abateu por toda Capela Sistina, quebrado apenas pela tosse discreta de algum cardeal. Passaram-se um, dois minutos, e nada. Até que finalmente ouviu-se um murmúrio. O chapéu tremeu de leve ao ser finalmente possuído pelo Espírito Santo. Faltava apenas uma coisa para que o novo Papa fosse escolhido. Todos, indiscriminadamente, aguçaram seus ouvidos.

- Sonserina! - gritou o chapéu. Vários se assustaram com o tom imperativo, mas logo em seguida alguns chegaram a rir.

O velho cardeal que presidia a votação desabou na cadeira. Com um gesto ordenou que o capelão entrasse e pediu-lhe que acendesse a fumaça preta. Em seguida, pediu aos presentes que iniciassem uma nova votação.

Os procedimentos se repetiram. Os votos foram escritos, recolhidos e contados. Novamente, o velho cardeal se dirigiu aos presentes.

- Que Sua Eminência, o Cardeal do Brasil, se apresente.

Desta vez o cardeal eleito levantou-se rapidamente. Um sorriso estúpido estampava seu rosto, mas era algo que indubitavelmente trazia simpatia. E simpatia, pensou o velho cardeal, era algo que a Santa Sé precisava nestes tempos conflituosos.

O cardeal brasileiro sentou-se, e novamente o chapéu foi colocado. Novo silêncio, nova expectativa, até que, de repente, o chapéu começo a murmurar:

- Paaaaaaa...

O velho cardeal suspirou. Só mais uma sílaba igual a essa, pensou, e o trabalho estava feito. Era visível na expressão de todos a mesma esperança. Ninguém lá era mais jovem, precisavam descansar, voltar a sua rotina, e aquele conclave estava demorando mais que o necessário. Mas precisavam ter certeza.

- Paaaaaaa... - continuou o chapéu, até que, finalmente – Paaaaaaamonha! Paaaaamonha! Pamonha de Piracicaba! É o puro creme do milho...

Desta vez ninguém entendeu nada. Que versos estranhos eram aqueles? Só compreenderam que não era um sinal de divindade quando o próprio cardeal brasileiro retirou o chapéu e voltou ao seu lugar, um pouco encabulado.

- Isso não está funcionando – declarou o velho cardeal, já irritado. - Este chapéu está com problemas. Sugiro que não o usemos mais. Ao invés disso, oremos para que o Espírito Santo nos ilumine, e nos dê um sinal.

Todos aprovaram a sugestão. Aquilo estava realmente cansando. Simultaneamente eles fecharam os olhos, baixaram a cabeça e juntaram as mãos. Oraram em silêncio, os ouvidos atentos a qualquer distúrbio que pudesse indicar um sinal de Deus.

Subitamente, o salão da capela foi inundado por notas musicais. A prece parou, todos olhando em volta, meio embasbacados, pois não viram ninguém sentado na banqueta do imenso órgão. Mesmo assim o ar era expelido por seus tubos em notas claras. Em seguida, uma voz doce e profunda tomou o ambiente.

“And now, the end is near;

And so I face the final curtain.

My friend, I’ll say it clear,

I’ll state my case, of which I’m certain.“¹

Alvoroço. Estaria o conclave sendo visitado por anjos? Seria esse o sinal que todos esperavam?

“Regrets, I’ve had a few;

But then again, too few to mention.

I did what I had to do

And saw it through without exeption.“²

Não havia mais como manter a ordem. A voz, antes um murmúrio distante, agora utilizava a concha acústica da capela em sua plenitude. Todos, sem exceção, procuravam a fonte daquela voz misteriosa.

“Yes, there were times, I’m sure you knew

When I bit off more than I could chew.

But through it all, when there was doubt,

I ate it up and spit it out.

I faced it all and I stood tall;

And did it my way.”³

Sem ser convidado, um rato enorme escalou a mesa, e parou sobre as patas traseira na frente do velho cardeal. A voz saía potente por entre seus dentes protuberantes, mais forte do que seus pequenos pulmões poderiam suportar, mas sem dúvida era ele o cantor daqueles versos.

Foi o cardeal americano que finalmente elucidou o mistério. Não que fosse uma explicação muito convincente, mas sem dúvida respondia a mais de uma dúvida:

- Look! It's a rat singer! - e repetiu - A Rat Singer!

Os versos terminaram imediatamente, assim como os sons do órgão. Antes que os últimos ecos se dissipassem, o rato fugiu, desaparecendo por uma fenda no mármore. O silêncio voltou à capela.

- Habemos Papam – declarou o velho cardeal, chamando com um gesto impaciente o cardeal alemão. Iniciou uma prece, mas no fundo ficou o gosto amargo da impressão que, por mais que a questão tivesse sido resolvida, era bastante claro que a infâmia estava de volta à Igreja.

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¹ “E agora, o fim está próximo; E então eu encaro a cortina final. Meu amigo, eu direi isso claramente, Apresentarei meu caso, do qual estou certo.“

² “Arrependimentos, eu tenho alguns; Mas de novo, muito poucos a mencionar. Eu fiz o que tinha de fazer, E perseverei sem exceção.”

³“Sim, houve um tempo, Tenho certeza que você sabe; Quando eu mordi muito mais do que poderia mastigar. Mas mesmo assim, quando havia dúvida, eu engoli e cuspi. Eu encarei, e permaneci de pé. E fiz isso da minha maneira.”

(Trechos de “My Way”, de Frank Sinatra)

Alexandre Heredia
Enviado por Alexandre Heredia em 23/09/2005
Código do texto: T53024