Três cantos brabo

Este conto é uma pequena homenagem ao Ziber, meu irmão de fé.

Não é possível ! Cinco partidas de caxeta e as cinco ganha pelo Lemão?

Numa delas, ele tirando 8 fichas, sem dar chance pra ninguém?

Eu, jogador de baralho pra mais de vinte anos, de duas uma: ou ele era um sortudo do cão ou estava roubando.

Fiz as contas mentalmente. Tirando as cervejas e os espetinhos, cinquentinha tinha ido pro saco. Muito prejuízo para uma noite só e foi por isso que a partir daquele momento fixei minha total atenção nele e nos movimentos de mão.

Que no jogo é assim: neguinho se destacou demais vira foco. E eu sabia que os outros estavam de butuca (*)também. Nessa vida é assim! O mais fraquinho consertava relógio debaixo dágua . . . e com luva de boxe. No entanto lá estávamos nós, os bambambans do pedaço levando um reio sem limite daquele branquelo.

Que estava roubando não havia dúvidas. . . mas como?

Manga de camisa. Portanto não portava nenhum baralho escondido. Podia ser no bolso da calça, mas o carinha estava de shorts sem bolso.

Outra maneira de sacanear no jogo é filar carta morta na mesa. Já fiz muito isso! Como quem não quer nada dá uma panorâmica geral e levanta carta diferente da jogada. Se alguém vê e estrila dá uma de João-sem-braço e se desculpa dizendo que pensou que era aquela e não a outra. O perigo é ser queimado, mas aí é outra história. Só Mané total joãozeia (*)se tem perigo na área.

O diacho é que nem isso o Lemão fazia. Sempre na certinha sem alarde nenhum, a gente nem tinha armado, ele batendo de nove, de dez sem dó nem piedade. Coisa do demo!

Só que não nasci ontem! Mais de vinte anos de baralho, na maioria das vezes com feras do pano verde. Cagüira, Berola, Rufão, Binladen, Pescuma, eu já havia encarado e olha que isso, se existisse um ranking do carteado, era primeira linha. Tipo assim Real Madrid, Arsenal, Grêmio, Milan, Corinthias. Tábem! Tira o Timão dessa escalação fictícia. Certo que na maioria das vezes levei ferro nas disputas, mas uma ou outra ganhei e isso não pode ser desconsiderado de jeito nenhum.

Mas voltando a vaca fria, por mais que atenciasse não conseguia captar nadica de nada nos trejeitos do Lemão e sua sorte infernal.

Bem, de repente era sorte mesmo! Essa vida tem umas coisas estranhas que a gente não entende.

Por garantia coloquei um cargueiro(*) e fingi que ia tirar uma aguinha do joelho. A partida mal começando sabia que não me deixariam voltar, só na próxima.

Uma mijadinha rala, uma cerveja pra disfarçar e dei uma de sapo(*).

Primeiro espiei o Escadinha, depois como quem não está nem aí estiquei os olhos no jogo do Portuga até parar atrás do Lemão. Meio longe pra não dar na cara, mas não tão longe que não desse pra pegar alguma mutreta.

Sexta partida terminada e nada! Nenhuma carta filada, nenhuma ação estranha, só batendo, batendo, batendo numa seqüência de dar nojo!

Pisquei pro cargueiro para ele continuar, pedi um espetinho pro Zeloni, lamentando no fundo mais dez perdidos e continuei na espia.

Uma coisa aprendi com meu finado pai( que Deus o tenha ): ninguém é tão burro que cobice uma moita de capim, nem tão esperto que não deixe escapar nada. E foi o que aconteceu! De repente, do nada, captei a troca de olhares entre o Cidoloco e o Lemão.

Então é isso, pensei! De pronto me enganchei na cadeira perto do segundo, só na espreita dos movimentos dele, no jeito de pegar as cartas, nos tiques faciais e ao mesmo tempo de olho na cara do Lemão do outro lado da mesa.

Na mosca! Foi só o Lemão coçar a sobrancelha,o Cido desmanchou um par de sotas e carcou (*)na mesa. Nada ainda! Na rodada seguinte, uma acendida de cigarro do Lemão e o parceiro dele esbagaçou um jogo de reis. Primeiro o de copas e na seqüência o de paus e:- Com todas! - gritou o brancaio esparramando as cartas na mesa.

Foi aí que peguei o que restou do jogo do Cidoloco e mostrei para os outros jogadores.

- Ele tinha quatro cartas bêbadas (*)e desmancha um jogo de reis?

Depois do alarme foi fácil. Seguramos os dois, demos uns catiripapos(*) nos escutadores (*)deles e tomamos a grana. Sete vezes 40 igual 280 e deixamos o resto que era dele. O Lemão ainda reclamou, dizendo que eu não estava no jogo mas expliquei entre dois tapas de mão aberta na fuça dele que o Godói era cargueiro: jogava pra mim e com a minha grana.

Outro tapa no segurador do óculos dele quando teve o desplante de dizer que a gente estava roubando ele.

- Dá queixa da Polícia! Sentenciou o Portuga, morrendo de rir, sacudindo a barriga.

Peguei minha grana e continuamos o jogo, ainda ressabiado e pensando no zunimento de orelha que os dois estavam tendo.Um frio subiu pela minha espinha.

É que duas, três semanas antes, eu e o Pelé Careca tínhamos feito o mesmo.

Com uma diferença: a gente não foi ganancioso nem um pouco. Teve vez de deixar de bater, o jogo pronto na mão, uma dó no coração, só pra não dar na cara batendo sempre e assim despertar suspeitas.

Que na vida é assim: até pra roubar no jogo a gente tem de ser um pouquinho honesto ás vezes.

Butuca: prestando atenção

Joãozeia: faz besteira

Cargueiro: jogador que é colocado no nosso lugar, jogando pela gente

Sapo: caras que ficam atrás da gente só espiando o jogo

Carcou: jogou

Bêbadas: sobrando na mão sem fazer parte de nenhum jogo

Catiripapos: tapas

Escutadores: ouvidos

Nickinho
Enviado por Nickinho em 13/06/2007
Reeditado em 13/06/2007
Código do texto: T524678