O Chef
O ‘C H E F’
Cedo no dia, meus primeiros movimentos encaminham-me obrigatoriamente à cozinha. Meu reino, meus sabores, meus odores. O fogão vitrocerâmico proporciona-me muitos prazeres e revela surpresas de agradável sabor ao paladar. Ali sou o soberano, alto como uma pirâmide, poderoso e absoluto como um “CALIFA”. Do cimo de minha altivez olho para meus utensílios, indispensáveis como o ar que respiro.
Quando em descanso de meu labor profissional, vou ao meu templo provocar ruídos e chiados em panelas e frigideiras. Faço por prazer, além de me garantir o sustento indispensável à dignidade humana. São nestes momentos que provo novos sabores. Entro no meu santuário como se estivesse entrando no túnel escuro do sono, com paredes estreitas, pelo qual caminho sem nada enxergar, sem ferir-me nas laterais, orientado apenas pela herança genética. De repente, em posição de lótus e ainda de olhos fechados, percebo flashes esbranquiçados, como se fossem farrapos de nuvens caminhando no céu de meu cérebro. Sonho com novos pratos, com condimentos variados, com oferendas e libações aos Deuses da boa comida. Desfruto desses momentos por horas a fio.
São meus sonhos. Sonhos rebeldes e inspiradores como a “Taça de Baco” a embriagar o profissionalismo gastronômico. Leve como uma pluma e ágil como o pensamento, deslizo pelos espaços existentes entre os fornos, fogões, geladeiras e inúmeras prateleiras produzindo sabores exóticos, regionais e universais com a santa intenção de agradar os paladares mais exigentes.
Nas madrugadas frias ou calorentas vou ao mercado em busca de ingredientes. Para mim esta procura é um verdadeiro deleite. Ali, onde todos me conhecem, adquiro verduras e legumes. Para sabores sofisticados preciso de limão da Sicilia, carneiro da Nova Zelândia, leite e manteiga da Holanda, pimenta da Índia, azeite da Grécia, e páprica da Hungria. Saio à procura do salmão de águas geladas e do bacalhau da Noruega, do atum do Japão, da sardinha de Portugal ou ainda do camarão da Malásia. Também uso o frango do meu querido Brasil, assim como filet mignon, alcatra, osso buco e rabada.
Parece cansativo percorrer continentes à procura de matéria-prima para elaborar um almoço ou uma ceia. Encerraria o périplo exausto e consequentemente desmotivado. Ledo engano. Dirigindo meu carro automático, com ar condicionado e ouvindo Puccine chego a um supermercado climatizado onde encontro tudo o que preciso para começar a trabalhar minhas delicias degustáveis. Depois de banho tomado, cabelos sob a touca e avental na cintura, escolho com o prazer do orgasmo o prato do dia a ser elaborado. Mãos à obra. Arte, talento e concentração são itens indispensáveis para o preparo como também para inibir criticas desvairadas.
Três a quatro horas sob o calor do entusiasmo, com a boca salivando, e os olhos arregalados, dou por finalizada a tarefa do expediente. Por entre moveis vazados espreito as fisionomias dos comensais. Eles são o meu termômetro do sal correto, das especiarias sem exageros, do cozimento no ponto adequado. Quando riem eu rio, quando desprezam, choro meu desespero, minha agonia, meu despreparo. Quase nunca isto acontece, para meu jubilo.
Quando termino o dia tenho as gustativas em verdadeira revolução, pedindo um copo com água, afinal elas também têm direito a um banho saudável e de limpeza de sabores misturados.
Com a família janto um sanduiche ou uma sobre-coxa de frango ou, ainda, um delicioso espaguete com camarão e legumes. Os chineses têm mãos de fada, sem desprezar os franceses.
Uma esposa belíssima, filhos inteligentes e lindos (todos os filhos são lindos!), a harmonia reinando no lar e mais uma excelente garrafa de vinho (para os adultos) para acompanhar a culinária da Deusa Gastérea, o dia está completo. Depois, um sono reparador para, no dia seguinte, começar tudo de novo. Assim é a prática do homem. A prática da repetição.
À frente do altar da purificação, só me resta dizer que acordei de um maravilhoso sonho gastronômico e não posso deixar de revelar que “eu mesmo” não sei fazer nem um ovo frito. Perdoem a franqueza!
Anchieta Antunes
Gravatá – 03/06/11.