A luta pelo milésimo(milésimo o quê?)CONCLUSÃO

As arquibancadas estavam apinhadas de torcedores.Seu Joaquim e dona Davina eram só sorrisos:Placas com o logotipo da loja de auto-peças estavam coladas por toda a estrutura de madeira e metal,e, dali a alguns minutos,os jogadores entrariam envergando os uniformes feitos pela costureira contendo ,nos calções e camisas ,o nome do ateliê da modista.Era o marketing agressivo marcando presença naquele futebol de bairro.

Dentro do banheiro,que servia de vestiário, os jogadores amarravam as chuteiras,e colocavam as camisas para dentro dos calções.Astolfo estava excitado.O barulho ensurdecedor da galera lá fora,dava a impressão de que eles iriam disputar uma final de campeonato.Resolveu puxar papo com seu primo Inaldo para descontrair:

__Você acha que o gol sai hoje?

__Espero que sim,porque eu não aguento mais essa babaquice de milésimo gol....uma cambada de marmanjos,com filho e tudo,se matando para ver quem faz mais gol nessa pelada "chulé"...não tem nem graça...é deprimente!!!!!!

Tudo bem ,a pelada era "chulé" mesmo,mas metade do sarcasmo de Inaldo devia-se ao fato dele não ter a mínima chance de ganhar o prêmio.Vocês sabem como é o ditado:Quem desdenha quer comprar.

Rupert,o "destrinho de prata",num gesto de camaradagem,abriu uma garrafa de vinho para celebrar o jogo que prometia ser histórico.Todos ,a exceção de Lourival ,que era "irmão" e por isso não consumia álcool,beberam pelo menos um copo,o que serviu para animar a "galera".

Lourival,com 999 gols,vendo que Rupert esquecera seu par de meias em casa,ofereceu gentilmente um par sobreçalente;que ele sempre trazia para casos como este.Rupert aceitou a oferta, calçou-o, e logo estava pronto para o jogo.

A entrada no campo foi triunfal.A torcida gritava,alternadamente, os nomes dos três postulantes ao prêmio.O juiz Nilsinho inspecionava as redes,para evitar ser surpreendido por um furo qualquer.O cara e coroa foi tirado,e a saída coube ao time de Rupert,ficando a escolha do campo para o time de Lourival.

Dada a saída,os dois times engalfinharam-se numa luta sem tréguas.O mais engraçado, era que o placar não importava ,e sim que o milésimo gol saísse.No time de Rupert e Sandro,todos só passavam a bola para o "destrinho de prata",ignorando completamente o atacante "rompedor",que ,afinal de contas,também lutava pelo prêmio,pois tinha 999 tentos marcados.

O que Sandro não sabia, era que toda aquela "generosidade" com seu colega de equipe não era por acaso:No dia anterior,ao saber dos times sorteados por Dona Zulmira ,Rupert entrou em contato com cada membro da sua equipe,e ofereceu "milzinho" a cada um para que ele fosse, digamos,ajudado na "missão" do milésimo.Além disso,o jogador responsável diretamente pelo passe final,receberia um bônus de mais "milzinho".Com essa atitude não muito desportiva,o "destrinho de prata" tinha como certa a sua vitória,mesmo estando com 998 gols,um a menos que os seus competidores diretos.

Toda esse empenho tinha um motivo:Rupert sofria de hemorróida;do tipo mais grave,que não respondia aos tratamentos paliativos,tipo passar babosa e comer bastante frutas e verduras.Só um novo tipo de cirurgia ,empregando técnica revolucionária ,que o "destrinho de prata" vira na internet, resolveria.O problema era que ele não tinha plano de saúde,pois sempre considerou isso um desperdício de dinheiro,já que nunca ficava doente.Uma separação conjugal recente,no entanto, o deixou financeiramente mal,impossibilitando-lhe bancar do próprio bolso a operação.Para vocês terem uma idéia da gravidade do quadro,Rupert jogava com uma fralda geriátrica por debaixo da cueca ,tentando evitar que seu short ficasse ,digamos, manchado.

Lourival tinha outro motivo:O dinheiro dava certinho para quitar seu apartamento,financiado pela caixa econômica.Também era um bom motivo!

Sandro,ao contrário dos dois,não tinha a mínima idéia do que faria com o "cascalho".Ainda morava com os pais,e provavelmente colocaria o montante numa aplicação qualquer,até decidir-se.

Voltando ao jogo:Um contra-ataque rápido do time de Rupert pegou a defesa do time de Lourival mal postada.Sandro estava livre de marcação,mas o ponta de lança Inaldo,primo de Astolfo,preferiu lançar para o "destrinho de prata",que mesmo acossado por dois marcadores,deu um chute certeiro no canto direito do arqueiro adversário,marcando seu tento de número 999.Só faltava um agora!!!

Sandro reclamou com Inaldo,que desculpou-se dizendo que não o tinha visto.Astolfo,desconfiado da jogada,chegou perto do primo e perguntou:

__Inaldo,você também entrou na "parada" do "milzinho"?(Inaldo havia "pescado" no ar a história do suborno)

Com um sorriso maroto nos lábios,Inaldo deu uma resposta enigmática; digna de um mafioso:

__Já que não posso ganhar os cinquentinha,não acho nada demais tentar tirar o da "cervejinha"!!!

A comemoração foi contida,até porque o primeiro tempo estava quase no fim,e Rupert não queria perder tempo .Dada a nova saída,Astolfo fez uma jogada individual digna de maradona,driblando três oponentes,e tocou para Lourival,que ,livre,deu um toque por cima do goleiro,que saiu no desespero,tentando fechar o ângulo.A bola passou pelo guarda metas,e caprichosamente resvalou no travessão,indo para fora.Lourival teve vontade de chorar; Rupert e Sandro respiraram aliviados.Com o apito estridente do árbrito Nilsinho,o primeiro tempo acabava.

Ao sair de campo rumo ao banheiro,Sandro sentiu-se estranho,meio tonto...,meio sonolento....parecendo querer perder o equilíbrio.Astolfo reparou,e perguntou se ele estava sentindo alguma coisa.Tentando disfarçar,Sandro disse que estava meio gripado,nada mais.O que o pobre coitado não sabia era que Rupert,querendo eliminar a concorrência,havia colocado no seu copo de vinho,um poderoso calmante em gotas,do tipo que é dado aos doentes em hospital psiquiátrico,para que eles fiquem ,digamos,"paz e amor".Lourival também seria vítima do golpe,mas sua "doutrina religiosa" o salvou.

Quando o segundo tempo começou,Sandro não passava de um zumbi,perdido no meio do campo de jogo,....apalermado.Por dentro,Rupert exultava,constatando o sucesso do seu plano.Mas o "destrinho de prata" não sabia que também havia sido enganado:As meias que ele usava,emprestadas por Lourival, estavam batizadas com "pó de mico",substância que causava uma coceira terrível onde batia. Na metade do segundo tempo,Rupert parecia mais estar dançando frevo do que jogando futebol.O único que reunía condições de fazer o gol era Lourival.O destino,porém,interviu sem compaixão:Ao chutar uma bola ,Lourival escorregou e esticou demais a perna,e teve uma distenção.Agora,os três estavam fora de combate!

A partida caminhava para seu fim melancólicamente.Não adiantou o "destrinho de prata" tirar as meias,pois o "pó de mico" já tinha "empolado" seus pés e tornozelos.Lourival não conseguia dar meio passo sem que uma dor lancinante no músculo adutor o paralisasse.Sandro,por sua vez, não saía da "banheira".Não era oportunismo não;é que se ele corresse muito pelo campo,"cairia de maduro".

Mas a justiça divina finalmente deu as caras: Paulão, zagueiro do time de Lourival,foi rebater uma bola para frente,de qualquer jeito,e acertou o traseiro de Sandro,que estava de costas para o gol.A bola tomou efeito,encobrindo o goleiro Rubinho;e foi morrer no ângulo esquerdo. Era o milésimo!!!!!!!!!!!!!!!!!!

A torcida não esperou o fim de jogo.Desrespeitando o juiz Nilsinho,que ainda daria dois minutos de acréscimo,a multidão Invadiu o campo e carregou Sandro em triunfo,apesar do jovem estar quase em estado vegetativo.Padre Jonas veio com um cheque simbólico de cinquenta mil reais,e o entregou à Sandro,que apenas olhava tudo em volta com um ar abobado.

Rupert,arrasado,já pensava em quanta babosa,xylocaína e fraldas geriátricas iria gastar,até ter dinheiro para a cirurgia.Como bom desportista,devolveu as meias para Lourival que,pensando no dinheiro que não teria para quitar seu apartamento,jogou-as dentro da mochila,esquecendo do "pó de mico".Ambos nem quiseram ver a Premiação.Sairam assim:Rupert com as pernas abertas,todo assado e com os pés e tornozelo empolados,e Lourival capengando.

No dia seguinte,Sandro ,Já recuperado do "estranho" mal estar que o acometera na véspera, e para o qual não conseguiu encontrar explicação,foi até a Igreja receber o verdadeiro cheque.Ao chegar na sacristia,encontrou padre Jonas nervoso,quase chorando.

Quem chorou realmente foi Sandro,ao saber que dona Zulmira,a senhora que era responsável pelo catecismo da paróquia e pelas súmulas dos jogos,havia fugido com o dinheiro todo,"desaparecendo na poeira".Padre Jonas desculpou-se e disse que nada poderia fazer,pois não sabia do paradeiro da velhinha "bandida".

Astolfo ficou com pena de Sandro,mas sabia que o rapaz não preci sava realmente do dinheiro ,pois era de uma família de posses.Ele iria superar;pensou "com seus botões".

Atualmente,o futebol de sábado perdeu muito seu "ibope",mas Astolfo prefere assim:Todos jogando apenas por diversão.