A luta pelo milésimo(Milésimo o quê?).PRIMEIRA PARTE

Aquele futebol de sábado pela manhã já era uma tradição.Por exatos treze anos,um grupo de amigos(alguns nem tão amigos assim),reuniu-se para praticar o esporte preferido de nove entre dez brasileiros.A "arena de batalha" ficava num campo de terra batida situado atrás da igreja do bairro.

É verdade que o jogo começou por acaso:Astolfo,promissor dentista,procurava um jeito de "mexer o esqueleto" nos fins de semana,e lembrou do espaço ocioso nos fundos da "igrejola".Propôs ao vigário,então,que se fizesse um mutirão com os fiéis, para capinar,aplainar e demarcar o local,transformando-o num simpático campinho de "peladas".

No início,o padre não entusiasmou-se muito ,mas depois percebeu as possibilidades da empreitada:Não havia um campo de futebol nas redondezas,o que obrigava os moradores do bairro a jogarem as partidas na rua mesmo,demarcando os gols com sandálias de dedo,ou irem ao campo do "suor e lágrimas",que ficava a cinco quarteirões de distância.O nome incomum do campo supra-citado,deve-se à uma história dramática ocorrida no local anos atrás...Mas,voltando ao assunto;o padre concluiu que,uma vez feita a benfeitoria,a paróquia poderia ter um bom lucro alugando aquele "espaço desportivo".Assim,no domingo seguinte,durante a missa,o vigário exortou os fiés a participarem da nova "missão".O prestígio do pároco era grande,fazendo com que praticamente todos aderissem à idéia.

Obra Terminada ;o sacerdote passou a alugar diariamente horários para as "peladas".Como Astolfo foi o "pai" da idéia,teve o direito de escolher o horário que quisesse.Escolheu sábado,de oito às dez.

O dentista chamou seus primos e amigos,formando o primeiro elenco da pelada.Ao longo dos anos,várias "caras novas" apareceram;os amigos chamavam seus amigos e conhecidos.....,mas esse grupo inicial era a base de toda a brincadeira.

Astolfo só queria romper com o sedentarismo,e não ligava se perdia ou ganhava;mas nem todos pensavam assim:Inaldo,seu primo,não admitia perder,e por diversas vezes quase chegou as vias de fato com seus adversários,ou com os próprios colegas de equipe.Percebendo que a repetição das mesmas formações todos os sábados,exacerbava a competitividade,pois se um time perdia por vários fins de semanas seguidos,começava a entrar para "rachar",gerando inimizades,o "conselho" da pelada,formado pelos membros fundadores,decidiu que seria feita uma alternãncia nas equipes,visando eliminar o problema.

Providência tomada,o problema das rusgas foi minorado.Eu disse minorado;pois em futebol,todo mundo que já jogou sabe,sempre pode acontecer um lance mais viril,uma jogada mais dura,uma entrada "sem querer querendo",gerando discussão.

Um outro problema que ocorria ,era o comparecimento irregular dos jogadores.Eu explico:Como, inicialmente, a pelada não tinha muitos participantes,qualquer um que faltasse fazia falta,obrigando os jogadores presentes, a convocar atletas que ficavam nas "arquibancadas" (caixotes de madeira colocados à beira do campo,surrupiados da feira das terças)apreciando o jogo.O problema todo era que esses "bons samaritanos",nos sábados subsequentes,achavam-se no direito de pleitear vagas permanentes,gerando contendas.

A solução encontrada pelo "conselho" foi estipular uma multa por falta.A partir daquela data,cada um que faltasse ,teria que pagar dez reais para a "caixinha".O valor arrecadado seria depositado numa caderneta de poupança,e seria dado ao jogador que primeiro completasse a marca de mil gols.Os tentos marcados seriam registrados na súmula do jogo,feita por dona Zulmira,secretária do pároco,e responsável pela coordenação do catecismo da igreja. O plano era estimular o comparecimento dos "atletas" ,já que ninguém ia querer pagar multa,e todos ficariam estimulados pelo prêmio,que certamente cresceria com o tempo .

A notícia da premiação espalhou-se rapidamente,e cada vez mais pessoas,de olho no prêmio, queriam participar da "pelada".Com o tempo,Astolfo e seus primos tiveram que estipular também uma taxa ,igualmente de dez reais, para ingresso na pelada,pois eram só duas horas de jogo,o que limitava o número de jogadores.

A multa pelas faltas,que,como previsto, continuavam à ocorrer, o dinheiro das inscrições,e ,por sugestão do padre,uma pequena porcentagem do dinheiro arrecadado durante o ano ,nas festas beneficentes dadas pela igreja ;fizeram a poupança atingir a simpática quantia de ......CINQÜENTA MIL REAIS!!!!

Aquele inocente futebolzinho de sábado ficou tão famoso;que se você digitasse no google:Pelada de sábado da igreja da Anunciação,rumo aos mil gols;imediatamente aparecia na tela do micro as súmulas de todos os jogos,bem como os principais aspirantes ao prêmio.

Os derradeiros jogos tinham sido tensos,pois tinhamos três jogadores que estavam bem próximos do milésimo.Eram eles:Rupert;que estava com 998 gols.Por sua extrema habilidade em fazer lançamentos com a perna direita,recebeu a alcunha de "destrinho de prata",numa clara referência ao "canhotinha de ouro" Gerson,tricampeão mundial de setenta no México.Lourival;com 999 tentos;atacante habilidoso e rápido,e ,por fim,Sandro;também com 999 gols;atacante rompedor,"a la" Serginho "chulapa".

Não fossem as atuações perfeitas dos arqueiros,o milésimo já teria saído no último jogo.Como era consenso geral a certeza de que no próximo jogo teríamos o tão esperado tento,foi armada uma estrutura quase profissional para o evento:Foram montadas arquibancadas em volta do campo,financiadas por seu Joaquim da loja de auto peças, que viu no jogo ,uma excelente oportunidade para divulgar seu negócio.Dona Davina,costureira,doou novos uniformes ,igualmente pensando na promoção,e Nilsinho,juiz aposentado,ofereceu-se para apitar o "derby".Diferente de seu Joaquim e de dona Davina,o ex-juiz,que havia atuado na segunda divisão do futebol acreano nos anos oitenta,não visava nenhuma vantagem econômica na história.Ele gostava de aparecer mesmo.

Astolfo constatava ,assustado, a proporção que aquele simples joguinho de sábado tomara.

Ele não sabia da "missa" a metade.