“Mineirices” O sábio, a Pita e o rei
“Sai de casa com o bolo e a Pita; com bolo matei Pita, com Pita matei sete, dos sete escolhi o melhor, atirei no que eu vi e matei o que eu não vi; com lasca de madeira e palavras santas, assei e comi; bebi água nem do céu e nem da terra; se bom era o fruto, melhor era a raiz; sobre o duro em cima do mole e vi um morto carregando três vivos; ao chegar nesse palácio, encontrei três coelhos, que eu mesmo esfolei e as peles deles mostrei”.
O texto é conhecido em vários países como França, Espanha, Alemanha e Portugal. No Brasil, recebeu diversas versões, sendo conhecido pelos mais antigos, de forma bastante popular, nos estados de Pernambuco e em Minas Gerais.
No estado do nordeste brasileiro, recebeu o título de “O matuto João” (Contos populares do Brasil, n.º XXXV; Leite de Vasconcelos).
Em Minas foi intitulado “O rapaz bobo que enganou o rei e se casou com as princesas”, não havendo nenhuma referência quanto a publicações, no estado, sendo a história, contada de pai para filho, à noite, em torno do fogão à lenha, hábito muito comum no passado, sobretudo no interior das Minas Gerais, onde cresci ouvindo-a ser contada por meus tios e pela minha mãe.
A “adivinhação” retrata a história de dois irmãos plebeus, de família muito pobre, órfãos de pai e vivendo com a mãe já bastante idosa. O mais velho dos irmãos era sábio e se saia bem diante de qualquer desafio que exigisse esforço mental.
Já o mais novo, era valente, forte e decidido. Trabalhava desde muito cedo no serviço braçal e sustentava a mãe e o irmão mais velho, embora fosse bronco e de intelectualidade mediana, considerado por todos na corruptela onde vivia, como sendo retardado (pessoa idiota e imbecil, sem noção das coisas).
Certa vez, o rei, preocupado com o futuro de seu reino, não tendo sido abençoado com um filho varão, mas sim com três belas filhas, todas ainda donzelas, decidiu escolher um genro, promovendo uma espécie de concurso.
Para fazer casar uma de suas filhas, o rei publicou um decreto, determinando que qualquer homem do reino que quisesse se candidatar para se casar com a princesa e assim tornar-se futuro rei, poderia se dirigir ao palácio onde encontrariam uma roda com três orelhas de coelhos. O candidato deveria então fazer a roda girar e retirar uma das orelhas. Nela estaria o nome de uma das três filhas do rei.
Depois de escolher na sorte com quem iria se casar, o valente nobre ou plebeu deveria entrar no palácio e fazer ao rei uma pergunta da qual o soberano não possuísse resposta. Se assim fosse, o rei coroaria o jovem como príncipe, concedendo-lhe a mão de uma de suas filhas. Porém, caso o rei respondesse a pergunta, o jovem seria condenado à morte, sendo enforcado diante de todo o reino no mesmo dia.
Para isso, o jovem audacioso precisava ser munido de três qualidades principais para um rei: Iniciativa (ir até o palácio), conhecimento (perguntando algo do qual o rei, homem mais sábio de todo o reino, não tivesse resposta) e de coragem (já que seria morto se não fizesse a pergunta certa).
Tendo tomado conhecimento de tal decreto, o irmão mais velho, do alto de sua arrogância e prepotência, seguiu confiante para a corte, despedindo-se do irmão, da velha mãe e dos amigos, afirmando que quando voltassem a vê-lo, não deveriam chama-lo nem de irmão, nem de filho e nem de amigo, mas sim de majestade, pois estaria casado com a filha do rei e seria o próximo imperador.
No entanto, meses depois de sua partida, o povoado em que morava viu surgiu a cavalaria do rei que entregou a mãe do jovem, uma caixa onde se encontrava sua cabeça, decapitada após o enforcamento ordenado pelo rei, ofendido pela prepotência do rapaz que se achou mais sábio do que o próprio imperador.
Muito triste, a mãe sepultou os restos mortais do filho à porta da cozinha e sobre a cova plantou rosas que eram regadas todos os dias com suas lágrimas de dor e de saudades, fazendo surgir rosas de beleza incomparável.
Muitos anos haviam se passados e muitos jovens do reino já haviam morrido tentando desafiar o rei com uma pergunta que ele não pudesse responder e assim, poder se casar com uma das filhas tornando-se príncipe.
O rei, desolado, acreditando não existir em seu reino homens sábios, que tivessem a hora de um dia se tornarem seu genro e consequentemente herdeiro de todo o reino, já estava quase desistindo. Centenas de jovens, velhos, plebeus, nobres e até lacaios já o haviam desafiado, sem obter sucesso.
Na província, o jovem bruto, não suportava mais ver a velha mãe chorar sobre a sepultura do irmão executado pelo rei e decidiu se vingar.
Tomado de coragem, decidiu ir à corte e desafiar o rei, tomando para si, não uma das princesas, mas as três de uma só vez.
Ao comunicar a mãe, esta entrou em desespero e muito lutou para que o filho não fosse ao palácio, alegando que, se o irmão sábio havia sido morto, ele, burro como era, também haveria de ser. Percebendo o quão cabeça dura era seu filho, ela resignou-se e decidiu fazer um bolo para que o filho levasse em sua jornada. Nele ela colocou ervas venenosas para que, se o filho fosse morrer, que morresse sem ser submetido ao sofrimento e a tortura pelas mãos de carrascos, e sim pelas mãos de quem o trouxera ao mundo.
Começa a viagem
Com a matula preparada pela mãe, um saco de dormir, uma moringa d’água e em companhia de sua inseparável amiga “perdigueira”, a quem batizara de Pita, o jovem começou a viagem, à pé, seguindo em direção a corte.
Depois de muitas léguas percorridas, o jovem sentou-se sob a sombra de uma frondosa árvore e preparou-se para comer a matula que a mãe lhe preparara.
Percebendo que sua companheira de viagem também estava faminta, deu-lhe o primeiro pedaço do bolo que o pobre animal devorou ferozmente.
Antes de experimentar ele próprio a quitanda da mãe, o jovem percebeu que Pita convalescia, revirava os olhinhos e espumava a boca: estava morrendo.
Desconfiou então que a mãe havia envenenado o bolo para que ele não alcançasse seu objetivo. Tratou logo então de enterrar o que havia sobrado do bolo e pôs-se a caminhar, levando consigo, sobre os ombros, a infeliz companheira.
No caminho, encontrou-se com sete bravos soldados, cada um armado de um rifle e estes, famintos, depois de muitos dias de caminhada, retornando da guerra.
Vendo o moribundo andarilho com a cachorrinha morta, os soldados tomaram do pobre jovem sua companheira e a assaram em uma fogueira, fazendo um banquete da cadela envenenada.
Poucos minutos se passaram até que a carne envenenada se tornasse indigesta e trouxesse a visita da morte aos bravos combatentes que a guerra não matou, mas a fome que os matavam, uma vez saciada, tirassem-lhes a vida.
Vendo a desgraça que se abatera sobre aqueles homens, o jovem que até então jamais havia empunhado uma ferramenta que não fosse a enxada, a foice e o machado, tomou posse de uma das armas e seguiu seu caminho, deixando para traz sete sepulturas e um chanfro de madeira rabiscado com carvão onde se lia: “aqui jaz os que morreram por matarem aquilo que os matavam”.
Continuando sua jornada, o jovem se viu em um campo florido, repleto de aves e empunhando desajeitadamente a arma que trazia a tiracolo disparou contra uma ema acertando uma rolinha.
Com a presa não mão procurou por galhos secos, mas só encontrou galhos e vegetação verde. Já quase desistia quando se deparou com uma sepultura e em sua cabeceira, uma cruz de madeira já envelhecida e bastante seca.
Lascando um pedaço do símbolo sagrado, pedindo perdão pelo sacrilégio praticado por uma boa razão, assou a rola e matou a fome que o matava.
Depois de descansar sob a sobra e de se sentir revigorado, pôs-se a caminhar em direção ao seu destino.
Em pouco tempo o sol escaldante e a parca refeição lhe provocaram sede e por mais que procurasse, não conseguia encontrar água em lugar nenhum.
Foi quando avistou ao longe um cavalo pastando mansamente, então teve uma ideia para saciar sua sede.
Domando o animal e montando em pelo, pôs-se a galopar velozmente pelo campo fazendo com que o animal suasse muito e assim, usando as mãos, coletou o suor do animal e tomou matando sua sede. Deixou então o animal onde o encontrara e seguiu seu caminho à pé, pois não era ladrão.
Algumas léguas adiante, encontrou um burro a escavar com as patas dianteiras, um tomateiro carregado de tomates do campo.
Espantando o animal, comeu dos frutos do pé, saciando-se de uma só vez da fome e da sede, fazendo de alguns frutos um suco, espremendo-os enrolados em sua camisa e deixando o caldo cair dentro de sua moringa vazia.
Depois de saciado, sentiu curiosidade e continuou a escavar onde o burro havia começado, qual não foi sua surpresa, ao encontrar na raiz do tomateiro, um embornal cheio de moedas de ouro.
Faltava pouco para que o jovem alcançasse seu destino e querendo se apresentar de maneira menos rústica, decidiu parar as margens de um riacho para se banhar, tirar a poeira da estrada, lavar suas roupas fedidas e descansar.
Sentou-se sobre um grande tronco, de uma árvore caída sobre o riacho de margem a margem, que servia de ponte natural. Nesse momento, viu surgir trazida pela correnteza, uma vaca morta e sobre ela três urubus que se banqueteavam.
Entendeu então que aquele era um aviso dos céus para que não fizesse pouso e que seguisse rapidamente para concluir sua odisseia.
O novo rei
Ao chegar diante do palácio, encontrou a roda com as três orelhas de coelho e como havia decidido desde o início de sua jornada, se tornar o marido, não só de uma, mas das três princesas, retirou as três orelhas e se apresentou diante do rei, mostrando-lhe as orelhas e dizendo que estava ali porque ia se tornar o príncipe e ia desposar-se com suas três filhas.
Achando cômica tal afirmação e acreditando estar diante de um louco maltrapilho, o rei mandou logo que seus lacaios chamassem o carrasco, preparassem a forca e comunicassem a todo o reino que mais um petulante insano, que ousou desafiar o rei, seria enforcado ao pôr do sol.
Mas, como ele mesmo, o rei, havia baixado tal decreto e por se orgulhar de ter sido justo em todo seu reinado, mesmo às gargalhadas, permitiu que tão insignificante ser diante de si, fizesse a pergunta que julgava não ser de seu conhecimento.
Cabisbaixo e tremendo como uma vara verde em meio à ventania, o jovem então se pôs a dizer:
Sai de casa com o bolo e a Pita;
Com bolo matei Pita;
Com Pita matei sete;
Dos sete escolhi o melhor;
Atirei no que eu vi e matei o que eu não vi;
Com lasca de madeira e palavras santas;
Assei e comi;
Bebi água nem do céu e nem da terra;
Se bom era o fruto, melhor era a raiz;
Sobre o duro em cima do mole;
Eu vi um morto carregando três vivos;
Ao chegar nesse palácio, encontrei três coelhos;
Que eu mesmo esfolei e as peles deles mostrei.
Explique-me majestade.
Depois de ouvir atentamente, o riso sumiu do rosto do rei que perplexo, sem acreditar no que estava acontecendo e sem conseguir nenhuma explicação para o que acabara de ouvir, pediu ao jovem que repetisse, tentando assim ganhar tempo para responder a questão.
Depois de ouvir novamente a questão, concluiu que diante dele estava um homem que de bobo, só tinha a cara e o jeito de andar.
Assim o rei determinou que a cerimônia de casamento fosse marcada e que o jovem, depois de se tornar marido de suas três filhas, as princesas do reino, fosse coroado como o novo príncipe.
O jovem bruto vingou a morte do irmão, secou as lágrimas da mãe e tornou-se rei, vivendo feliz para sempre ao lado de suas três princesas.
Assim contavam...