GASTRONOMIAS FILOSÓFICAS

Logo que entrei percebi que era um daqueles restaurantes temáticos. Eu já havia estado em vários restaurantes temáticos antes, mas era a primeira vez que a Segunda Guerra Mundial servia de inspiração para algo do gênero.

Acomodei-me em uma cadeira que provavelmente fora destruída durante um dos ataques da Luftwaffe e solicitei o menu. O cardápio parecia ótimo, por isso resolvi não deixar nada de fora - com exceção do brócolis (é uma hortaliça que me faz lembrar um antigo professor de piano que morreu afogado na banheira devido a mania de cochilar fora de hora). Iniciei degustando um filé mal-passado que mais parecia um remendo de asfalto.

Enquanto satisfazia minhas necessidades gastronômicas, observei as outras pessoas em volta na sua luta cíclica contra a fome. A forma com que realizam este ritual é fundamental em suas vidas, com o garfo e a faca ocupando um lugar de extrema importância na formação moral do homem moderno !

De repente me dei conta que estava filosofando. Pareceu-me, naquele instante, que não existe momento mais propício para preocupar-se com a condição humana do que a hora do almoço.

Enquanto a mulher da mesa ao lado reclamava que algo estava se mexendo entre a alface e as batatas, eu pensava nos grandes e primordiais problemas que afligem o homem desde que nossos ancestrais desceram das árvores e perceberam que andar ereto amenizava a dor nas costas.

Deus existe ? A alma é mortal ? Posso repetir a sobremesa ?

Sim, eu podia repetir a sobremesa. Quanto as outras questões era necessário refletir mais um pouco. Lembrei de Platão e seu palpite sobre o mundo das idéias. Se ele estivesse certo e o mundo em que vivemos for realmente uma cópia imperfeita do mundo das idéias, isto significa que existe algo melhor do que moqueca de camarão em algum outro lugar e que ainda não experimentei !

Havia algo de errado com a forma que aquele restaurante dobrava os guardanapos. Porque – pensei antes de atacar a salada – alguém em sã consciência dobraria os guardanapos daquela forma ? Que ideologia secreta ou impulso pervertido levaria alguém a uma ação tão contraditória ? Já estava me tornando, neste meio tempo, em um filósofo eloqüente quando antes de me aprofundar no arroz à grega relacionei o parâmetro existente entre o estado gripal do cozinheiro e a aparência esverdeada dos bolinhos de carne.

De forma irrefletida misturei o molho branco na carne sem me dar conta que minha mente trabalhava em direção a elucidação das mais sérias questões. É claro que não sou o primeiro nem serei o último a tentar resolver tais problemas, mas de qualquer forma minha metodologia estava amplamente embasada não só em uma profunda lógica cartesiana e na relativa coexistência kantiana dos sentidos e da razão, mas principalmente no conhecido desejo humano de ganhar uma boa grana com tudo isso.

Assim, iniciei com a clássica pergunta: de onde viemos ? Bem, pensei eu pondo os tomates de lado, esta é uma pergunta muito relativa. Para respondê-la é necessário estarmos sentados numa mesa tomando conhaque num daqueles terríveis dias de inverno. Neste momento eu poderia ficar tentado a responder “não sei de onde vim, mas com este frio não é daqui que vou sair”. Mas isso não resolve a questão. Para alguns cientistas somos produto casuístico de uma singular sopa orgânica favorecida pelas condições ambientais, que a revelia de qualquer suposição naquele instante, logrou o aparente êxito do raciocínio abstrato, ao contrário de tudo mais que foi gestado a seu redor. Não contente com isso resolvi ir mais a fundo, inclusive no vinho tinto, mas só após uma beliscadela na berinjela à milanesa as coisas ficaram mais claras. Na verdade não viemos de lugar algum, pois sempre estivemos aqui. Prova disso é o fato de que desde o começo nunca tenhamos estranhado o ambiente, ou será que alguma vez você entrou em casa e disse “nossa, que lugar estranho é esse ?!?!?!?”. Com a primeira grande questão resolvida, pude me dedicar plenamente à coxinha de galinha.

É lógico que eu ainda não estava satisfeito, o que me instigou a enfrentar o próximo tema: o homem possui alma ?

Essa pergunta entrou em meu rol de análise após presenciar um cliente do restaurante ignorar completamente a presença de um aspargo em seu prato. A primeira coisa a se fazer neste caso é estabelecer conceitos: o que é alma ? Qual o sentido da palavra “possuir” ? “Haverá expediente na quarta-feira de cinzas” ? Por alma entendemos tudo aquilo que não conseguimos tocar muito menos pegar, como por exemplo, certos políticos. É lógico que um ônibus vazio em um dia de chuva também está fora de cogitação, mas o que estou querendo dizer é que a alma está além de nós, da nossa vontade. Percebi que da mesma forma que nem todo o pastel de camarão possui camarão, também nem todos os homens possuem alma. Os que não as tem de nascença e também nem sentem falta, preferem concorrer a alguns cargos eletivos. Outros a vendem, mas raramente conseguem entregar a mercadoria intacta, enquanto os que a compram adquirem um péssimo artigo de segunda mão.

Meu almoço já estava chegando ao fim, por isso resolvi fechar com chave de ouro. A derradeira lacuna no conhecimento estava prestes a ser completada: Como podemos chegar ao conhecimento pleno ?

Grandes filósofos e alfaiates debruçaram-se sobre este problema suas vidas inteiras. No meu caso, debruçar-me significaria enfiar os cotovelos no pudim de leite. Optei por comê-lo.

Parece-me óbvio que a raça humana nunca chegará ao pleno conhecimento. Basta enumerar quem de nós já conheceu um esquimó ou mesmo a cozinha de um bar de rodoviária ? Enquanto a civilização continuar desenvolvendo-se haverá também sempre uma questão nova a ser discutida e conhecida. Quem, antes de Graham Bell, conhecia os principais números de tele-entrega ? Quem, antes de Santos Dumont, preocupava-se com a queda de aviões em bairros residenciais ? Em suma, o conhecimento é igual a algumas novelas mexicanas: quando pensamos que tudo foi resolvido sempre surge um “Francisco André” para dar continuidade à trama.

Era hora de partir. Completamente satisfeito com a contribuição singela que prestei à filosofia, solicitei a conta da forma mais relativa possível e percebi, resignado, que não há nada mais concreto do que o preço de um almoço somado a gorjeta do garçom. Consternado por não entender de onde tiraram tantos números para aquele absurdo de conta, aceitei o conselho de Sócrates “só sei que nada sei”. Paguei e saí.

Gui Desantana
Enviado por Gui Desantana em 19/11/2014
Código do texto: T5040894
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