A Barata

Já eram mais de três da manhã, ou eram duas e pouca ainda... Enfim, madrugada à dentro! Isso que importa!

Era de madrugada!

Eu estava meio bêbado, fui à Lapa com uns amigos meus depois do trabalho, e olha que ainda era terça-feira. Isso faz de mim um alcoólatra? Chegar bêbado em casa em plena terça?... Que seja! Cheguei bêbado, suado pra cacete,- pois morar na ladeira da vila onde eu moro, cansa muito – e fui direto pra cozinha!

A fome era enorme. Aperitivos de bares não enchem minha barriga não! Batata frita, queijos, salames, até mesmo pizzas. Isso enche minha barriga por alguns momentos, mas quando eu chego em casa, tenho que comer um prato de feijão. Sempre foi assim. Quando criança, me chamavam de Huguinho Feijoada. Pois sou louco por feijões. E meu lanche da madruga, era sempre um prato de feijão, acompanhado por uma fatia de pão-de-forma. Eu sei qu faz mal comer tanto e tão tarde, mas é um vicio que tenho desde criança,cara! É difícil se livrar dele de uma hora para a outra. Mas que seja!

Cheguei com aquela fome de feijão. Acendi a luz da cozinha, perdi o equilíbrio por alguns momentos. Sim, tudo parecia girar. Tudo parecia se mover ao meu redor, e eu precisava do meu ponto fixo no chão. Assim que a rotação local parou, fui até a pia, empilhei os pratos sujos, (no dia seguinte eu os lavaria), abri a pia, lavei o rosto ali mesmo e ao olhar pro cantinho da copa, vi uma coisa que me chamou a atenção. Um feijãozinho solitário se mexendo sozinho.

Pisquei os olhos diversas vezes tentando entender a cena. Como, em anos de existência e convivência entre feijões e humanos, aquilo teria sido presenciado? Jamais! Apalpei meus bolsos atrás de meu celular para filmar tal cena, porém, meus olhos foram acertando o foco. Não era feijão não, gente. Onde eu estava com a cabeça! Falando assim, vai parecer que sou alcoólatra! Não era feijão! Era apenas... Uma daquelas baratinhas escrotas, pequenas e abusadas, que ficam na nossa cozinha. Por mil demônios, como às odeio!

Sabe aquele momento que sua cabeça trava? Em que você fica com o olhar fixo, viajando em algo que num merecia nem míseros 1% de atenção dos 10% que usamos do nosso cérebro? Pois é, aquela vadiazinha conseguiu isso. Ela caminhava de um canto pra outro sobre a pia inox. Andava com suas perninhas rápidas e nojentas, parecendo procurar algo. Cheirando algumas migalhas de pão deixadas ali, encostando-se em algumas gotículas de água respingadas fora da bacia da pia. Foi quando ela parou bem na minha frente, e ali ficou. Estávamos frente à frente, e eu pude notar que sua cabecinha miúda havia se elevado um pouco. A barata estava olhando em meus olhos. Sabe? Me encarando? Não encarando disfarçadamente como fazemos no metrô cheio, que dá uma agonia da porra não saber pra onde olhar, e quando sem querer você para seu olhar em alguém aleatório na maioria das vezes uma mulher), essa pessoa vira a cara e te pega no flagrante? ... Sabe?... Ah, foda-se! A baratinha estava me encarando!

Eu fui me abaixando devagar, até que ficasse na altura dos olhos dela. Ficamos nos encarando, e sei lá, mas ela me passou uma paz. Uma paz que eu não sentia em alguns dos humanos que eu convivia. Sabe? De repente me veio uma culpa! Eu já matei tantas baratas na minha vida. Às vezes sem motivo, às vezes apenas pra me sentir superior. Teve uma vez, também de madrugada, que uma barata estava passeando com seus filhos, e eu, num momento de crueldade sadista, peguei uma caixa de fósforos Paraná, daquelas grandonas, e coloquei sobre a barata maior. Meu ego de superioridade foi nas alturas! Ver aquele ser inferior, sujo, que se alimenta de restos, tentando sair daquele peso extra em sua vida. Tentando escapara da morte eminente... Mas agora, diante daquela baratinha que me encarava docemente, pensei: E se fosse uma (ou um) barata pai de família? E se naquele momento, o pai estivesse levando seus dois (talvez três) filhotes para ver a lua, ou contemplar a lata de lixo? Eu destruí um programa familiar. Eu deixei crianças órfãs. Posso ser considerado um Hitler pelos insetos!

Eu resolvi ajudá-la. Abri a geladeira, peguei um pedaço de pudim do dia anterior, que comprei na Parmê, e coloquei sobre a pia. Ela ficou um pouco receosa. Era tão bonitinha. Olhava para mim, depois olhava para o pudim. E acho que, num momento de revelação, ela viu que eu era confiável. Foi pra cima do pudim, passou suas anteninhas, e começou a comer. Eu fiquei observando orgulhoso. Fiquei olhando aquela baratinha devorar seu pudim com uma fome de gafanhoto. Peguei uma cadeira, sentei de frente para ela.

Imaginei que, depois de comer aquele pedação de pudim, ela estaria com sede. Pudim dá sede, todos nós humanos sabemos disso! Fui até o basculante do banheiro e peguei o borrifador de água com que molho minhas roupas antes de passá-las. Borrifei algumas vezes sobre a pia, até criar uma pequena piscina. Mais uma vez minha nova amiguinha olhou para mim, olhou para as gotas, e não pensou duas vezes antes de mergulhar sobre a pequena poça que se formava, conforme as gotinhas iam se unindo. Eu me senti como se tivesse fundado um parque aquático para ela. Ela mergulhava em suas piscinas, corria de um lado para o outro, e nesse intervalo de corrida, ela ainda ia lá, lamber os restinhos do pudim.

Tão faminta, essa minha amiga.

Então, olhei para o relógio. Eram quatro da manhã, quase cinco. No dia seguinte, eu havia marcado com um amigo meu de irmos ao mercadão de Madureira comprar bebidas pra festa no final do mês. Eu precisava dormir. Mas... Mas não queria deixar a baratinha ali, sozinha. E se ela fosse pra casa do vizinho? E se... Ele a matasse? Peguei uma caixa de fósforos, algumas folhinhas de minhas plantinhas, forrei o interior da caixa com elas, afofei,peguei minha amiguinha (com a ponta dos dedos delicadamente), e a coloquei ali para dormir. Ela se virou prum lado. Pro outro... E parou. Estava cansada. Brincou a beça no parque aquático que papai criou pra ela.

Enquanto ela dormia, eu fiquei pensando na minha vida, e em quanto eu tinha coisas em comuns com Beth (sim, esse foi o nome que dei a ela: Beth). Sabe? Ela era um ser solitário. Andar pela noite à procura de alimentos, nunca ter amigos por perto, que a acompanhasse. Eu também era assim. Minha família é de outro estado, eu tô no Rio sozinho. Aqui, meus amigos só são meus amigos até o fim do expediente, ou fim da balada. Nunca saímos pra conversar, pegar um cinema, ou somente jogar vídeo game. Ando sozinho pela cidade, vou ao cinema sozinho, como coisas sozinho, e procuro lugares pra comer, que não sejam caros, ou que não sejam muito prejudiciais. Assim era Beth. Assim era eu.

Resolvi adotá-la.

Os dias que se seguiram foram de conhecimento. Minha mãe, na época quando gostava de mim, e não me achava um filho escroto, dizia que eu poderia ser um bom pai. E eu seria! Levei Beth aos parques da cidade, e a deixava correr pela grama. Levei Beth ao cinema para assistir Os Vingadores! Vi Beth ter medo, ao assistir “MIB: Homens de Preto”, aquele primeiro, onde o vilão era uma barata alienígena. Queria saber o que passou pela cabeça dela naquele dia. Medo por conta de ver uma barata ser um monstro, ou medo de ver os humanos bater em baratas. Vi Beth sorrir ao assistir “Joe e as Baratas” no TNT. Ela era tão lindinha. E seu sorriso, inaudível, mas que eu sabia estar ali, era tão calmante.

A vida não poderia estar melhor. Eu já não bebia mais. Eu já não virava mais a madrugada. Gente, eu num sentia mais prazer em sair com prostitutas. Eu só queria dedicar minha vida aquele serzinho que entrou na minha vida. Ela me mudou.

Mas... Um dia... Beth apareceu morta. Não sei bem, mas estávamos planejando um almoço especial de cinco meses de convivência. Preparei uma sopa de ervilha, coloquei o pudim no forno para assar, e até pedi para que ela chamasse uns amigos e amigas para nossa festinha. Porém, Beth andava esquisita. Já tinha uns dias, meses, que ela começara a andar com algumas baratas maiores que ela. Saía de tarde e só voltava tarde da noite, tonta, esbarrando nas coisas. Certa noite, tive até a impressão, pelo modo que ela mexeu as patinhas, que Beth tinha me mandado tomar no cú! Naquele momento minha mão se ergueu, quase cometi a loucura de lhe dar umas palmadas, mas aquilo a mataria. Simplesmente fui para meu quarto.

Onde eu havia errado? O que eu deixei faltar? Parei e pensei, talvez Betinha fosse uma baratinha jovem. Talvez fosse. Só estava se divertindo. Me vi naquela situação. Quando ia para as baladas na minha cidade, enchia a cara, voltava só de manhã, e lá estava minha mãe, acabada de preocupação, me esperando. Só quando somos pais entendemos essa preocupação. Certa vez, meu falecido pai disse: “Quando você tiver filhos, dê adeus à suas noites de sono, seu besta!”. E ele estava certo.

Ele tinha razão. Eu não dormia mais. Minha filha saía todas as noites, chegava tonta, sempre com umas baratas maiores trazendo-a em casa, e nem boa noite me davam. Foi então, que numa madrugada eu me escondi na cozinha para falar umas verdades para esses sujeitos. Mas Beth num chegava. Então ouvi uma barulheira na área de serviços que me chamou a atenção. Quando acendi as luzes, lá estava minha filha, com uma barata com o dobro de seu tamanho, transando com ela enquanto outras olhavam. Num sei por que, mas imaginei baratas usando celulares para filmar aquele momento, ao som de 50 Cent. Fui tomado por um ódio! Aquelas baratonas mandando ver na minha pequena Beth. Sem pensar, retirei meu chinelo, e atirei. Um dos chinelos pegou no cara que comia minha filha. Ele morreu na hora, esmagado contra a máquina de lavar e um chinelo Havaianas. Beth desmaiou, fui pegá-la e senti um cheiro forte de inseticida. Minha filha, como eu suspeitava, estava viciada em SBP. Li coisas na internet sobre baratas que estavam se viciando em SBP. Havia rumores até de uma crackolândia de inseticida, onde elas pegavam onda em grupo. E minha baratinha... Estava envolvida com isso!

Dali pra frente, tudo mudou em minha casa. Beth já não falava mais comigo. Dormia debaixo do sofá, e não mais na cama de Barbie que eu havia comprado pra ela nas Lojas Americanas. Estava se distanciando de mim. E foi então que tive a ideia de fazer a festa pra comemorar nossos cinco meses de convivência. E, quando fui até o mercado comprar refrigerante, ao voltar, lá estava seu corpo, boiando no prato de sopa que eu havia colocado pra esfriar. Meu coração se partiu. Veio toda a história nas minhas lembranças. Tudo aquilo que vivemos, tudo aquilo que... Onde foi que errei? Será que tive pulso firme demais? Eu só queria seu bem. Talvez tenha sido um pai super protetor, e tal. Talvez eu devesse ter lutado pela liberação do Inseticida. Mas Beth se suicidar num prato de sopa? Não!

Comi a sopa assim mesmo. Com Beth e tudo. Ela era parte de mim. E assim deveria continuar. Sua alma no céu das baratas. Se empanturrando de pudim, piscinas, onde sempre seja escuro, pois baratas odeiam luz! Que sua almazinha fique no céu, e seu corpo e exoesqueleto comigo!

Essa manhã, três dias depois de sua morte trágica, eu descobri que estou com infecção intestinal das “braba”, e com perebinhas nas mãos. Percebi que as baratas na minha casa sumiram de vez. Descobri que estou ficando louco. E que preciso de um cachorro. Talvez eu o chame de Beto.

FIM

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 17/09/2014
Código do texto: T4965679
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