SONHEI, JURO QUE SONHEI ! . . . (04)

 
Acordei mal-humorado.  Uma terrífica impressão de traição.  Minha mulher, observadora, logo pergunta a causa do meu desânimo. 

- Por que não foi caminhar na praia, como o faz todos os dias?

- Por que não puxou algum assunto interessante durante o café da manhã?

- Por que não leu os jornais?  E, finalmente, qual o porquê dessa cara amarrada?...

Nada lhe respondi.  Levantei-me da mesa e fui curtir minha irritação com a cadelinha da casa – Lua –, minha amiga e eventual protetora, uma sumidade em lealdade.

Minha mulher me traz um antidepressivo e ainda insiste para que eu revele a razão desse amuo esquisito e desgastante.  Não tomo o medicamento, nem nada lhe falo.  Prefiro que ela leia, depois, o meu desabafo.  Ora bolas !
. . . . . . . . . .
Há um enorme terreno baldio no lado direito de nossa residência.   Limita-se, no outro extremo, por um extenso rego que recebe (e canaliza para o mar) o excesso de águas pluviais na estação invernosa.  Remotíssima possibilidade de vir a ser praça.  Arbustos, somente arbustos.   A natureza nos dá muitas coisas boas, mas a nós compete organizá-las.  Gosto de organização, sim.  Eu e minha mulher sempre gostamos de dar uma nova disposição às coisas, principalmente quando a serviço da humanidade.  Alguém tem fome.  Fomos à luta.

Com o nosso próprio suor, limpamos uma pequena área e plantamos mudas de algumas árvores regionais.  Por enquanto, bananeiras, jaqueiras, cajueiros e mangueiras.  É gostoso e terapêutico visitá-los todos os dias, acompanhando o crescimento daquilo que, há pouco, não passava de uma minúscula semente.  Tudo fica belo.  Ao mesmo tempo em que as árvores crescem, cresce o nosso amor por elas.

Aí, um oportuno insight !   Dar nomes de pessoas a cada uma dessas árvores.  Legal!  Pessoas amigas, conhecidas...  E – por que não? – pessoas amigas, conhecidas, falecidas, a começar pelos entes queridos de nossas famílias...

Genial !  Ideia aprovada por unanimidade (eu e minha santa mulher). 

A primeira homenagem foi, merecidamente, para minha querida sogra: Dona Maricô.  Escolhemos a mangueira mais bonita.  Ganhei um beijo do meu amor.

A segunda homenagem, mais que merecida, foi para a tia de minha mulher: Tia Teca.  Outra mangueira robusta.  Outro beijo.

Mais uma homenagem.  Para o meu pai, é claro.  Um enorme guerreiro que me ensinou a técnica do saber, em especial o saber lutar pela vida: Paulo Freire . . .        Haja sementes!

À noite, jantamos juntos, enfadados de tantas enxadadas pra amansar a terra.  Entre recíprocos abrimentos de boca, conversamos coisas interessantes, todas relacionadas com o nosso incipiente pomar.  Numa dessas, pergunto à minha mulher:

- “...e quando eu morrer, que árvore você vai escolher pra me homenagear?” – ao que ela prontamente respondeu:

- “Você será homenageado com uma jaqueira, uma árvore frondosa, secular e que cresce muito.  Tem mais:  não é daquela que produz jaca mole, não.  É a que produz jaca dura, de bago tipo lenhoso, suculento e que basta um pra dar sustância igual à de um almoço”.

Sabe!?... Fiquei orgulhoso de minha mulher, especialmente pela prometida honra póstuma que ela, se viúva, faria ao seu guerreiro maridão.  Bravo!  Bravo!  Não é todo homem que tem uma mulher assim, tão valorosa!

Acabado o jantar, após a digestão, fomos para o nosso merecido repouso, na cama.

Cansado, de verdade, logo adormeci.  Não sei se também logo, mas sonhei...

Ih !  Vote !  Sonhei que morria !   Cruz-credo ! . . .

Quando morremos, a nossa alma, o nosso espírito (ou coisa impalpável parecida) não segue mais nenhum calendário, ou horário terrestre.  Só sei que, num certo dia (ou noite, sei lá!) eu resolvi dar uma passadinha no meu querido e saudoso pomar.  Fui.  Estava belo, agora sob os cuidados de minha pobre viúva.  Meio perdido, saí procurando em todas as jaqueiras o meu nome - e nada de o encontrar.  Ué !   Será que roubaram alguma jaqueira? . . .

Resolvi dar uma olhadela nas outras fruteiras: cajueiros, mangueiras, goiabeiras... Nada.  Em cada uma, vi pregadas as peças de madeira entalhadas com o nome de um dos nossos amigos ou familiares.  Algumas que eu próprio havia feito.  Às vezes, com umas frasezinhas que caracterizavam a passagem do homenageado pela Terra...  E eu, quem deu a ideia, não estou nessa ?   Ora essa ! . . .

Ah ! . . .  Depois de muito procurar, estava sim.  Finalmente, achei.  Minha mulherzinha não podia nunca esquecer as qualidades do seu maridão, amorzão, queridão . . .

Estava ali.  Na saída do pomar, bem perto do portão, uma estreita madeira enfiada num pé de B-A-N-A-N-A, com a seguinte gravação:

          FERNANDO, /  TAL VIDA, TAL MORTE. /
                     QUE DEUS TE SUPORTE”.